UM ADEUS AO RIO DOCE

Eram pouco mais de 15h de quinta-feira, dia 5 de novembro, quando um forte estrondo foi ouvido nas proximidades de Fundão, uma das três barragens de rejeitos mantidas pela mineradora Samarco, a cerca de 50 km de Mariana, na região Central do Estado. Em 40 minutos, 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos, despejados com o rompimento da barragem, começaram a lamber de forma devastadora as primeiras casas do distrito de Bento Rodrigues, a 2,8 km do local do acidente. Dali em diante, como um enorme tsunami, o mar de lama foi avançando de forma impiedosa, abrindo caminho em meio a pequenos distritos, propriedades rurais, vegetação intocada, lagos, córregos e rios. Nada foi poupado nem foi capaz de segurar a força daquela espécie de “lava fria”, responsável por matar 12 pessoas (11 ainda estavam desaparecidas), enterrar histórias e devastar um múltiplo bioma.

A reportagem de O TEMPO acompanhou de perto esse rastro de morte provocado pelo maior desastre ambiental do Brasil e um dos maiores do planeta, levando-se em conta o volume de material derramado na natureza. Além da redação em Belo Horizonte e de equipes em Mariana, os repórteres Bárbara Ferreira e Lincon Zarbietti foram do coração de Minas à divisa do Espírito Santo, onde o rio Doce deságua no mar, testemunhando esse cortejo fúnebre da quinta maior bacia hidrográfica do país.

Este especial dimensiona o tamanho do dano causado ao meio ambiente até aqui (quase um mês após o desastre), questiona as responsabilidades dos agentes envolvidos e, principalmente, mostra a dor de quem vive do agora agonizante rio Doce.

Nas palavras de Alberto Caeiro (um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa), assim o ribeirinho se relaciona com o rio de sua comunidade:

“(...) O Tejo desce de Espanha/E o Tejo entra no mar em Portugal/Toda a gente sabe isso/Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia/E para onde ele vai/E donde ele vem/E por isso, porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia (...)”.

O AMARGO DO RIO DOCE

Filho de pescador, também pescador e com o desejo de continuar a tradição da família – que já é secular – Antônio José Fernandes, 46, vive desde que nasceu às margens do Rio Doce. Ali, ele aprendeu tudo o que sabe da vida. Ali, ele se casou, viu seus filhos nascerem e, ali, tem suas melhores e piores lembranças. Ao olhar para as águas esverdeadas daquele rio, antes da tragédia, o semblante era sempre de admiração e respeito. Agora, o que resta é o cheiro de morte, que assola as margens desse rio, que já foi doce. “Quando vejo isso, a única coisa que vem a cabeça é morte”.

Ele mora no distrito de Crenaque, em Resplendor, no Vale do Rio Doce. No local, a maioria das pessoas vive da pesca, usa a água para cuidar dos animais, plantações e, mais do que isso, eles aprenderam a viver de acordo com o curso do rio. Quando soube que um acidente havia despejado rejeitos há mais de 400 km de sua cidade, o pescador teve medo, mas achou que o rio, que tanto proveu para ele, seria forte e resistira. Todos os dias, até a chegada da lama, saía de sua casa e ia para a beira daquelas águas, ver se estava tudo bem. Se despedir, talvez, mesmo que inconscientemente. Durante toda a vida, o que ele via naquelas águas era esperança, vida e beleza.

Nos dias que antecederam o amargor que chegou com a lama da mineradora Samarco, a imagem era paradisíaca. Um rio cheio de pedras, de águas claras, límpidas e, mesmo seco, cheio de vida. No dia em que a lama desceu (uma sexta-feira, 13 de novembro), carregando peixes mortos, um cheiro forte contaminou o ar, e o verde da água se transformaram em um alaranjado, uma vermelhidão que, segundo Fernandes, dói no peito. “O rio morreu. Acabou. Não sei se algum dia irei pescar aqui novamente. Talvez meus filhos, espero que sim, mas não tenho esperança”. Os olhos embaçam com lágrimas contidas.

“A ganância do homem é o que matou esse rio. Nunca imaginei que veria isso. A última vez que sentimos algo parecido foi durante uma enchente, em 1979, mas ela atingiu casas e levou coisas. Ela não matou o rio Doce”.

Dessa vez, logo após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, a lama de rejeitos desceu sufocando rapidamente vários cursos de água antes mesmo de atingir o rio Doce e, posteriormente, o mar, já no Espírito Santo.

Ao longo desse percurso macabro de mais de 400 km, a cada peixe que morreu e apareceu boiando pela água ou às margens do rio, um pescador pareceu chorar. E esse impacto, que além de ambiental, destrói vidas, histórias, memórias e todo um imaginário de quem escolheu viver junto a essas águas, vai ser lembrado pelas próximas gerações e ainda vai doer na memória de comunidades ribeirinhas por toda a extensão de um rio, que já foi doce.