Antônio José Santana Martins – Tom Zé – é um farto mentiroso. Eis a lorota: o baiano mais brasileiro da Tropicália não cansa de repetir que não é bom músico, que não tem bom ouvido. A mentira sincera que o compositor fala, ora ou outra, é prova certa de que há, em sua obra, algo de especial. Vinicius de Moraes, afinal, postulou: “o homem que diz sou, não é”.
Em palavras mais simples, tomo a liberdade de contrariar Antônio José, e colocar um ponto final no falatório. Não há o que se discutir: Tom Zé é um dos melhores músicos que o Brasil ousou ver nascer.
Aos 84 anos, vivendo em São Paulo, a quase 1,9 mil quilômetros de Irará, cidade do interior da Bahia onde nasceu em 1936, o músico mantém a energia criativa que transborda em tudo o que produziu. Há coisas novas vindo por aí, me alertou Tom Zé. Seguindo a linha de discos anteriores, o próximo será um estudo e, desta vez, o alvo é a língua brasileira.
O projeto, que inicialmente seria lançado em março de 2020, foi adiado e modificado durante a pandemia de Covid-19. Momento quando ele estudou meticulosamente diversos entraves históricos, políticos, sociais e musicais da língua. Não apenas, mas ampliou as construções de mundo que tinha e, quando chegar o momento certo, as despejará nas canções que estão por vir.
Assim como no passado, a idade e o salto geracional entre Tom Zé e a música brasileira atual – desde Emicida, Letrux, Mallu Magalhães e O Terno a novas vertentes do forró – fascina o compositor. Inclusive, ele define, sem pudor, que a produção nesta segunda década do novo século “não faz vergonha ao tropicalismo, à música dos anos 1950, à bossa nova” ou a qualquer outra música.
Nesta entrevista que marca a estreia da coluna Retratos, Tom Zé narra a rotina de estudos, abre o verbo sobre música popular e erudita, e não deixa espairecer a imaginação única do "último tropicalista".
Mas me conte, como tem passado nestes tempos de pandemia, o mundo anda tão triste, né? Como você está?
Bom, estou fazendo um trabalho com o Felipe Hirsch, que é um musical e vai ter como regente o Fernando Catatau. Ele ia fazer um musical de um disco meu sobre a bossa nova, mas ele viu a canção Língua Brasileira e ficou tão apaixonado pela ideia que mandou me consultar e disse: “olha, é muito mais natural essa proposta de pesquisa, tenho conhecedores da língua, da história da língua, que são amigos meus, posso botar todos para trabalhar comigo”.
Aí, nós mudamos para fazer o Língua Brasileira. Isso ia estrear em 22 de março do ano passado. Chegou a pandemia, e está transferido até onde não se sabe quando. Ele então falou: “Tom Zé, vamos fazer mais música sobre os assuntos”. Porque tem todas as nuances da língua brasileira viajando através da língua portuguesa.
Principalmente, uma coisa que é importantíssima no nosso trabalho civilizatório, que são oito séculos de invasão árabe na Península Ibérica. O árabe era o povo mais inteligente do momento, o mais culto do mundo naquele tempo. A Europa toda tinha sido conquistada pelos bárbaros cristãos. O nome está dizendo. Onde tinha alguma coisa de cultura, alguma coisa escolar, de sábios que eram apreciados e beneficiados, tudo foi destruído. Então, ficou aquela coisa da península Ibérica, a região de Portugal e da Espanha, habitada por um povo muito inteligente, muito culto, e essa tradição foi, de algum modo, herdada, quando Portugal veio descobrir o Brasil, herdada por nós.
Você concorda que é o último tropicalista?
Bom, o argumento deles é que eu continuei a fazer a coisa com a rigidez, o cuidado de ser sempre trabalhos investigativos, ao invés de me dedicar a uma música de rádio, que pudesse ir para a rádio, pudesse vender mais e tal. Mas não quero ter esse elogio, nem privilégio, porque eu faço o que sei fazer. Só sei fazer isso.
Queria entender um pouco para onde você está caminhando musicalmente. Afinal de contas, você nunca parou de produzir, e queria saber se você está brincando com isso, ou como está entendendo a música.
Há muito tempo que venho lançando coisas que são um único assunto, Tropicália Lixo Lógico, Estudando o Samba, Estudando o Pagode...
Tribunal do Feicebuqui, Vira Lata na Via Láctea...
Estou fazendo um assunto sobre todas as peripécias da língua portuguesa, caminhando para nós. Uma coisa muito fértil disso foi a escravidão... Deus me perdoe, falar em fertilidade, a terribilidade da escravidão foi muito importante na formação da língua brasileira, principalmente através do candomblé. E tem cidades, por exemplo Salvador, que todo mundo sabe falar duzentas, trezentas palavras do mundo do candomblé, que é super presente, e a presença negra é super importante. Tem estudos, tem toda a tradição do universo pensada no pensamento do candomblé.
Queria te perguntar uma coisa que Neusa me alertou por e-mail (antes da entrevista). Ela disse que você não cita o nome do presidente (Jair Bolsonaro), não quer fazer propaganda para ele...
Desculpe, quando a gente vê, parece que Bolsonaro faz as coisas para serem mesmo faladas mal delas. Eu descobri nesta semana graças ao [crítico literário] Márcio Seligmann, que fez um trabalho chamado “Para uma nova crítica da razão colonial”, no qual ele mostra como a epidemia do coronavírus foi causada pela ânsia do homem de dominar a natureza, e isso é a coisa própria de um modelo de enriquecimento do homem na Terra.
Desde que a Europa não conhecia o Terceiro Mundo, quando trabalhava para si mesmo, o que estava implantado lá era a eliminação da biodiversidade, dos habitats. E que transforma o corpo humano no mais perfeito para a multiplicação do coronavírus agora.
É interessante que o [antropólogo] Viveiros de Castro e a mulher dele têm um conceito sobre o antropoceno que está perto até de se oficializar como um conceito da história do planeta Terra. Essa técnica, que transformou a natureza em commodity, em mercadoria, que não respeita a natureza, e que não sabe que o homem, que tudo é natureza, como diz o escritor indígena [Ailton] Krenak, de “Ideias para adiar o fim do mundo”.
Tem um filósofo chamado Joseph Dietzgen que diz que a natureza está aí de graça. É um mero meio de acumular riqueza. Ele diz que a melhora dos métodos e instrumentos de trabalho resulta na riqueza e realiza o sonho que nenhum redentor conseguiu realizar. E a redenção é submeter os operários, que se tornam servos, operadores da destruição da biodiversidade e, como agora a maior parte da população da terra é de operários, então, o corpo humano ficou perfeito para esse custo de se tornar bem próprio para a expansão do coronavírus.
O Walter Benjamin, no tempo dele, também tinha falado sobre isso. Que essa primeira técnica, que a Europa usava, quando passou a ser usada nos domínios, virou uma técnica de destruição, de domínio da natureza. Tanto era escravo vindo da África, quanto era trabalhador escravizado aqui. E esse é o sentido da tal técnica vinculado à produção da morte e a destruição da natureza, e o cânone dessa tese é a guerra. A maior parte dos avanços técnicos nos últimos anos vem das épocas de guerra. São épocas de grande desenvolvimento tecnológico e científico.
Internet, televisão, telefone, tudo nessas épocas.
Pela guerra, fazem qualquer coisa. Todas essas pessoas que estudam isso tentam uma nova relação com a natureza. O Benjamin tem uma segunda técnica, que ele chama de a razão lúdica entre a natureza e a humanidade. Se não tem cuidado com a natureza, e o homem? Se estão pensando que o homem é fora da natureza, está errado. Quando o homem destrói a natureza, ele fica sem o que ele se alimenta, e fica sujeito a um caminho para morte. O coronavírus não é outra coisa senão isso. O homem precisa respirar, de viver ao lado da natureza. O homem não é uma coisa extraterrestre, não.
"Se não tem cuidado com a natureza, e o homem? Se estão pensando que o homem é fora da natureza, está errado"
Tenho 25 anos. Sou dessa geração mais nova, que é chamada de millennial, que está na linha de corte entre o digital e o analógico. Como você enxerga essa diferença geracional, quando técnica foi se adentrando no ser humano.
Quando eu nasci, em 1936, o mundo era uma coisa inconcebível para o que é agora. Irará era um silêncio absoluto, não tinha uma máquina, nenhum motor, não entrava, nem saía nenhum carro nunca, não tinha estrada para lugar nenhum. Eu vi chegando todas essas coisas lá. O primeiro caminhão, o calçamento das ruas. Tem uma coisa engraçada. O professor Rosenfeld fazia muita conferência no Brasil quando estava mais moço, nem sei se ele já morreu. Ele tinha coisa chamada o “especismo”, que é uma forma de discriminação contra quem não pertence a determinada espécie. Nós, que nascemos antes da tecnologia, somos outra espécie, não adianta, hahahaha! É muito estranho para nós.
É engraçado que Tom Jobim falava disso um pouco antes da morte, em 1993, 1994, de como as pessoas não ouviam os passarinhos, não sabiam os nomes dos bichos. Queria saber como você acha que isso impacta, tanto na produção artística, quanto na sociedade. O que você enxerga disso?
Estou de acordo, e tem um modo bem prático de observar isso. Nosso apartamento é no décimo andar. Eu vou muito à janela, vejo os prédios na frente, que hora ficam acesos, que hora vão dormir... aqui (em São Paulo), eu nunca vi ninguém numa janela.
Você sofreu, à época, muitas críticas por ter feito uma campanha para a Coca Cola, que foi uma das inspirações para a música. Desde então, isso virou uma práxis. Tem essa coisa de “cultura do cancelamento”, que o pessoal fala. Como você enxerga isso?
Naquela época não tinha essa palavra – cancelamento. Eu dou importância a qualquer pessoa. Uma vez, nessa ocasião, um jornalista disse “então você dá importância à internet”, como se eu fosse o mais ridículo ser humano sobre a Terra. Falei: “eu dou importância a tudo”.
Sobre a Tropicália – e aquela coisa de você ser o último tropicalista – sua relação com Caetano e Gil, na época, era constante. Só que, dos tropicalistas, você foi o único que chegou a estudar música no sentido clássico, cursou faculdade de música. Você tem um conhecimento técnico que Caetano e Gil foram adquirindo meio que na porrada, como narram no livro de Almir Chediak...
Sobre isso, quero te pedir desculpa de te interromper, porque tem uma coisa importantíssima nisso. Quando eu estava na Bahia e passei a estudar música no seminário, a Bahia era uma cidade que em todo lugar que você ia pulsava civilização. Se você ia na escola de teatro, isso estava elevado ao máximo da pesquisa. Se você ia na escola de música, na reitoria, por exemplo, (Hans-Joachim) Koellreutter não tocava música clássica. Koellreutter tocava música pós (Arnold) Schönberg, pós-tonalidade. Atonalidade, politonalidade, dodecafonismo. Então, Glauber Rocha, Caetano, Gil, (José Carlos) Capinam, o próprio Torquato (Neto) quando passava épocas na Bahia, eles também viviam, eles que eram famintos por cultura, nem sabiam que estavam vivendo um paraíso. Antônio Risério escreveu um livro, “Avant-garde na Bahia”, que conta toda essa fase.
Não pode dizer que Caetano e Gil e Capinam e Torquato não frequentaram escola de música, não senhor. Eles frequentaram como eu, eles foram ver as coisas mais modernas do mundo, tinha Koellreutter que botava lá para a gente ouvir na Bahia, fazer comparação, falar um pouquinho. E uma inteligência como a do Gil, Caetano, esse povo todo, não precisa frequentar aula de música para aprender uma coisa que estava na vista ali. Eles todos frequentaram. Não há a mínima dúvida que o Tropicalismo deve muito ao reitor Edgar Santos. E eles mesmos afirmam isso.
O Edgar Santos falou com o Koellreutter (para fundar a faculdade). Koellreutter falou “ô Edgar, eu vou fundar uma escola de música com o currículo ridículo do Ministério da Educação?”. E o Edgar disse a ele: “Não, Koellreutter. Você vem fazer a escola que você quiser”. Tanto que de vez em quando tinha passeata contra a escola de música que estava jogando dinheiro fora, contra a escola de teatro, contra a escola de dança... Estavam jogando dinheiro fora. Olha só.
Engraçado como as coisas se repetem às vezes. Hoje o Ministério da Cultura não existe mais, virou uma secretaria.
Essa coisa que caiu aqui em casa essa semana, “Para uma nova crítica da razão colonial”, mudou muito minha cabeça. Eu tenho uma mulher que é a cabeça aqui de casa. Eu sou um analfabeto aqui em casa, ela é a cabeça. E, por exemplo, na Bíblia Sagrada, Deus criou isso, aquilo, aquilo outro. No livro do Thomas Mann, “José e Seus Irmãos”, um dia, José, filho de Jacó, disse: “por que é que o homem é tão vaidoso? Até a mosca varejeira foi criada antes do homem. Por que é que o homem se acha tão importante?” hahaha!
Então, quando me perguntam hoje sobre governo, eu acho melhor estudar. Tenho procurado estudar sobre o que está acontecendo aqui e no mundo todo. É muito mais útil se a humanidade, se o Brasil, tivesse conhecimento. Não podia ter um governo como o que tem.
Em 2018, houve uma manchete muito curiosa que dizia que Caetano estava apoiando Ciro Gomes, Chico Buarque estava apoiando Haddad e Tom Zé estava confuso. Queria saber: Tom Zé continua confuso?
Naquela ocasião, eu votei no Haddad. Pode ser que tenha dito que estava confuso para não me meter na briga deles dois, mas aqui em casa votamos no Haddad. Mas o importante hoje são duas coisas: que é a política da vacina, que pelo visto está muito mal administrada...
Como você está se relacionando com a música que está sendo produzida atualmente? Você fez algumas gravações com Mallu Magalhães, com O Terno... Você gosta da música de hoje?
Foi ótimo você perguntar isso, que maravilha. Eu sou apaixonado pela música brasileira desde os anos 1950 em Irará, que a minha casa tinha rádio, que era um privilégio. E pegava a rádio Nacional do Rio de Janeiro em ondas curtas, a partir das seis horas da tarde. Era uma programação de luxo. Depois, um dia, disseram que iam tocar uma música dos anos 1920 e 1930. Rapaz, eu caí de costa. Como esse país faz música boa há tanto tempo.
Agora, você me pergunta de agora. Uma pessoa que tem esses parceiros nesse disco, um país que tem o Emicida, que teve a Rita Lee, Arnaldo Antunes, que tem agora ao lado de Emicida, Criolo, Letrux, pessoas que, ingratamente, não sei o nome, mas tenho amigos que me mandam esses discos. Mas ouço com verdadeira abismação, apaixonado. Vou lhe contar uma coisa para confirmar isso. No King’s College, da London University, existia um centro de estudos da civilização latino-americana. Isso lá pelos anos 1990. Daí foi criado um centro de estudo da civilização brasileira. Agora que vem o detalhe: o principal seminal, objeto de investigação, é a canção brasileira. A canção brasileira é quem mais serve como alimento para esse estudo da cultura e da civilização brasileira.
"[A música brasileira atual] Não faz vergonha ao tropicalismo, à música dos anos 1950, à bossa nova"
Eu quero acrescentar que a canção brasileira, desde os anos 1920, e antes disso e agora, nos anos 2000 e lá vai fumaça, não faz vergonha. Eu tenho orgulho. É como se fosse um novo tropicalismo essa música nova brasileira, que vai desde os meninos que trabalharam comigo, o Tim (Bernardes), a Mallu (Magalhães), Rodrigo Amarante, Pélico, Washington, às coisas mais radicais que o Emicida, o Criolo. Nossa senhora, eu sou um fã incondicional. O supermercado de meus alimentos culturais, um dos principais, é essa música brasileira atual. Não faz vergonha ao tropicalismo, à música dos anos 1950, à bossa nova. É claro, quando eu disser que não faz vergonha à bossa nova, muita gente vai dizer: “esse cara é um bobo”. Pois é, o bobo está dizendo, quem quiser, ouça para saber o que o bobo está dizendo.
Queria contrastar isso com uma declaração do Milton Nascimento que disse em entrevista à Folha que “a música brasileira está uma porcaria”.
Pqp. Olhe, vou lhe contar um caso. Fui tocar na Paraíba uma vez, e vi o Chico César, que foi secretário de Cultura, dizendo que um estilo novo que apareceu de forró, chapéu de couro, algo assim, “com dinheiro público, não” (tocaria). Daí cheguei aqui, fui ouvir. Caí para trás, e escrevi para ele: “Chico César, meu irmão, você é autoridade, mas eu fui ver as músicas e teve algumas que eu tive inveja. Algumas que eu tive inveja”. Eu sempre fui pesquisador de música. Por exemplo, aquele comentário sobre o “Tô Ficando Atoladinha”, dizendo que era um meta-refrão microtonal, plurisemiótico, Caetano saltou para dizer que era uma coisa muito intelectual, não sei o que. É nessas horas que vem o estudo que fiz de meia dúzia de anos que fiz na universidade federal.
Tem muita coisa acontecendo hoje. Há tanto coisas como a música da Letrux, que é uma reinvenção brasileira do pop, quase que uma brincadeira, com uma estética de internet, eletrônica, até figuras como o Thiago Amud, no jazz, é super talentoso. Há muita efervescência acontecendo.
Se meu curso na Universidade [Federal] da Bahia vale para alguma coisa, quero que endossem o que estou dizendo: É claro que tem o lixo, que toca no rádio, que não precisa pesquisa, mas, da música brasileira atual, eu tenho orgulho. Se meus estudos de música podem endossar isso, eu peço que endossem.
Uma dúvida: você tem ouvido absoluto?
Não tenho. Neusa, minha mulher, que é uma musicista gozadíssima, tem ouvido absoluto. Na escola de música onde estudei era raríssimo, é raríssimo no mundo. Quando eu digo a ela, não dá importância nenhuma. A música que estou acabando de fazer, ela está tocando no piano. Quando está cantarolando, está movendo os dedos no piano.
Pergunto por que já vi apresentações suas que parece que você tem ouvido absoluto.
É o contrário, eu tenho um ouvido péssimo, sou um músico ruim, um músico que trabalha pra fazer uma música dez dias, no que um músico boa vida toma um uísque e faz uma música que o país vai cantar o ano todo. Infelizmente, eu só faço música para o cognitivo, não faço música para o contemplativo. É uma deficiência que eu tenho. Mas, enfim, se luta com o corpo que tem. E todos os corpos, uma vez não se tendo racismo, são capazes de qualquer coisa.
Estudo música desde menino, gosto bastante de música, e você fez uma coisa muito curiosa, que, acredito, inédita no Brasil... você conseguiu fazer uma versão de Tom Jobim melhor do que Tom Jobim.
Hahahahaha! Em 6/8! Eu tinha que cantar um trecho de música para um professor de português da Rádio Cultura e, brincando, fiz em 6/8, que é um ritmo binário, como 2/4, mas tem essa sensação de coisa ternária. Mas quando eu fiz, eu vi que tinha feito uma coisa que ninguém faz, porque quando Jobim faz uma harmonia, ninguém deve fazer. Mas, por acaso, eu tinha feito outra harmonia, e é muito difícil da harmonia dar certo. Aí, me arranhei, peguei para ver e conseguia fazer o resto da canção em 6/8, e fiz. Eu tinha um parceiro que era muito bom de harmonia, Vicente Barreto, que era bom de aprovar a coisa. Mostrei pra ele, e disse “porra, você fez outra harmonia”. Durante muito tempo, eu tive admirado. De vez em quando eu passo dez anos sem ouvir um disco. Vou lhe contar uma coisa. Quando fui ouvir o disco da Bossa Nova (Estudando a Bossa Nova), eu chorei, rapaz. Eu não sabia que esse disco era assim. Não sabia que era tão cheio de manha. Por isso que um colega meu de universidade, que morreu há pouco tempo, foi ver um show da Bossa Nova e falou comigo: “Mas Tom Zé, isso não é música popular... tanto contraponto” hahahaha!
Mas essa coisa de música popular e música erudita... o que você pensa disso? Quase tudo que você produz pode ser considerado erudito em algum ponto, mas é popular, também.
Uma das coisas que tenho rancor é quando um camarada trabalha na Rádio Cultura FM e chama de “a boa música”. A boa música... tem muita coisa em música erudita que é um porre filha da p... Tem coisas boas porque só se toca as coisas boas, o lixo foi jogado fora. Para dar um exemplo, (Claude) Debussy, que fez a escala hexafônica, fazia crônica de jornal. Ele tem uma música que chama “O pós-meio dia de um fauno”, e ia ser exibido a sexta sinfonia de Beethoven junto à música. E ele esculhambou a sexta sinfonia de Beethoven.
O que é essencial – seja um livro, uma música, qualquer coisa – ter contato em 2021?
Do ponto de vista, por respeito por mim mesmo e me sentir um cidadão tentando colaborar com os outros neste momento político, a coisa que caiu aqui em casa foi “Para uma nova crítica da razão colonial”, o livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, [de Ailton Krenak] e “A Queda do Céu”, [de David Kopenawa].
Em termos de música, eu sou um apaixonado pelo o que o Emicida faz e pela atuação geral dele. Quando o Emicida me conheceu, ele tinha um programa na rádio Cultura, e queriam tirar ele de lá. Ele escreveu falando que o rapaz era importante, e que ele era a única voz que transmitia quem estava do lado dele. O Emicida. Não posso deixar de mencionar Zé Miguel Wisnik, meu parceiro na música do Grupo Corpo, “Parabelo”, aí de Belo Horizonte.
Um filme, talvez?
Tem um filme coreano, “Parasita”. Quando vi pensei “puxa, que bom. Agora não vou mais ficar na cabeça com Cidadão Kane”.