Autor do livro “Dias de Inferno na Síria”, o jornalista foi preso na cidade de Homs, um dos epicentros do conflito sírio, quando tentava relatar a vida dos cidadãos que convivem com uma guerra civil que já matou mais de 115 mil pessoas.
Em maio de 2012, o jornalista brasileiro Klester Cavalcanti viajou para a Síria a fim de tentar relatar a vida dos cidadãos que convivem com uma guerra civil que assola o país e que já matou mais de 115 mil pessoas. O destino escolhido foi a cidade de Homs, um dos epicentros do conflito. Porém, mesmo com visto de imprensa, os planos do jornalista não deram certo. Cavalcanti foi detido numa barreira militar e despachado para uma penitenciária naquela cidade, onde passou quase uma semana preso. Mesmo encarcerado, conseguiu compreender melhor o conflito que se passava do lado de fora e, até mesmo, desenvolver uma forte amizade com um grupo de presos. Mais de um ano após ter deixado a Síria, Cavalcanti ainda se emociona ao falar de sua experiência e revela que pretende voltar ainda neste ano ao país para cobrir a guerra, que, segundo o jornalista, ainda deve se estender por alguns meses. Para ele, a queda de Bashar al-Assad não seria a melhor opção para o conflito sírio já que a oposição que assumiria o poder seria bem menos tolerante com as minorias.
O que os sírios que você ainda tem contato relatam?
Converso com o Ammar Ali, um companheiro de cela, uma vez por mês. Ele e a mulher continuam morando em Homs, em um bairro mais afastado, longe do centro, onde a guerra é mais punk. Lembrando que Homs é uma cidade de 1,8 milhão de habitantes. Há áreas que, mesmo com clima de medo, de terror, a destruição ainda não chegou em massa. Tem sinais de guerra, tiros, bombas, mas não está tudo destruído. Mas eles estão sem trabalho.
E o que ele pensa do conflito?
Ele é um dos muitos sírios que eu conheci que não têm muita opinião política se o Bashar al-Assad deve sair ou não do poder. Eles querem a paz, voltar a ter a vida deles, voltar a trabalhar, viver na cidade em paz. O que ele deseja, como vi muita gente lá, é que a guerra termine. Porém, não tem uma análise política muito clara.
E qual é a sua análise?
A minha é que a melhor coisa que pode acontecer na Síria é o al-Assad ficar no poder. E eu falo que não morro de amores por ele, afinal, fui preso pelo governo dele, entrei na Síria com o visto de imprensa e fui preso pelo governo sírio. Eu fui torturado, ameaçado de morte, não me deixaram sequer dar um telefonema. Eu vi ataques do governo sírio na cidade de Homs, em regiões de civis. Porém, mesmo assim, tenho certeza de que se o Assad cair e a oposição tomar o poder, a situação ficará muito pior. Porque a oposição, em sua maioria, é sunita, é uma ala do Islã na Síria que é muito menos tolerante, do que as alauitas, que é o ramo do Assad, que é minoria. Na Síria, quase 80% da população é sunita e cerca de 10% é alauita. O resto faz parte de outras facções e cristãos. Em Damasco, vi mulheres de minissaia, blusinha de alça, cabelo solto. Vi igrejas cristãs perto de mesquitas, e nada disso estava em conflito, porque o governo é alauita, permite e até incentiva a diversidade. Se o governo for sunita, isso acaba. O governo sunita na Síria ficará muito mais semelhante ao Irã, ao que é o Paquistão. Hoje, na Síria, as mulheres votam. Se for um governo sunita, isso irá acabar. Eles nunca irão permitir igrejas cristãs, eles querem que a Síria se transforme em um Estado islâmico, que hoje não é. Na Constituição, a Síria é um país laico, oficialmente, na prática é um país árabe. E, por serem menos tolerantes, são mais violentos e agressivos. Isso falo sem medo de errar, se o Assad cair e a Síria ficar nas mãos dos rebeldes, sunitas, a situação vai piorar.
Como avalia a diplomacia da ONU no conflito e uma possível intervenção dos EUA?
O Assad tem o argumento que está defendendo o país dele. E, até hoje, ninguém sabe quem utilizou as armas químicas, não há provas. Eu mesmo acho que não foi o Assad porque usar armas químicas na região de Damasco não tem nenhum fundamento. Se fosse em Aleppo ou Homs, eu até acharia que teria sido o governo, mas perto de Damasco, não.
E as provas mostradas pelos EUA de que as armas foram lançadas de um reduto do governo sírio?
A Rússia tem provas que mostram o contrário. A gente não pode confiar apenas nos EUA. Os norte-americanos querem tirar o Assad, se tivesse alguém neutro com a prova, eu levaria em consideração. Os inspetores da ONU que foram lá e apuraram não disseram quem foi o autor do massacre com armas químicas. Os EUA falam que foram 1.500 mortos, a ONU fala que foram 500. É muito complicado.
E como achamos um equilíbrio na cobertura jornalística de um conflito como esse?
Em um evento como esse, a gente só cobre bem se estiver no local dos fatos. Porque, até estando lá, a questão dos números não é fácil. Muito do que eu opino, é o que eu vi lá, senti lá e das pessoas de lá que eu continuo conversando, do governo da síria, dos rebeldes, de civis. De todos eu sinto e tenho até contatos de rebeldes que já estão cansados, eles já sentem que seria melhor se essa guerra não tivesse começado. Ou seja, estão arrependidos, já que antes não tinha guerra e as coisas iam relativamente bem. Tem uma coisa que pouca gente fala, a oposição não quer democracia, o mundo árabe não sabe o que é democracia. Eles não querem, eles querem tirar o Assad e pegar o poder. Essa é a briga.
A guerra ainda se prolonga?
Em menos de seis meses, é impossível esse conflito terminar. Agora, pra quem está longe parece que deu uma arrefecida, mas não deu. Nesse momento tem bombas caindo em Homs e Aleppo. Parece que o Brasil e outros países se ligaram no conflito pelo risco iminente da intervenção norte-americana, já que poderia se tornar uma 3ª Guerra Mundial. Agora que o risco está reduzido, parece que paramos de pensar na Síria. Hoje mesmo, recebi uma foto de um cristão açoitado por rebeldes. Isso só termina quando um dos lados se cansar ou desistir. O governo não vai desistir de maneira nenhuma. E não sei até que ponto os rebeldes irão manter a luta porque eles não são unidos. Há várias facções, há grupos que querem desistir.
E a questão dos refugiados?
Hoje são quase 2 milhões de refugiados, a maioria deles está no Líbano, e em segundo lugar na Jordânia. O Líbano, oficialmente, está do lado de Assad, a Jordânia é mais neutra, e a Turquia é contra o governo. E é claro que isso gera conflitos nos países. Por exemplo, na Turquia e no Líbano, nas cidades de fronteira, tem uma questão que os refugiados são pessoas que estão dispostas a trabalhar por muito pouco, o que gera conflito com os empregados locais. São muitos efeitos colaterais que as pessoas não contam, o que torna essa guerra tão delicada.