O governo brasileiro, por meio do Ministério do Povos Indígenas (MPI), pediu explicações à OpenAI sobre um concurso global lançado pela empresa para identificar sítios arqueológicos na Amazônia, que tem gerado mal-estar entre grupos de pesquisadores do país. A pasta, que diz "observar com preocupação" a iniciativa, também solicita que não se divulguem mapas com a localização desses sítios até um acordo com órgãos competentes.

O concurso se intitula OpenAI to Z Challenge, em referência à lenda da cidade perdida de Z, que o explorador britânico Percy Harrison Fawcett acreditava existir em algum lugar na floresta em Mato Grosso. Ele, o filho e um amigo desapareceram no Alto Xingu enquanto buscavam o tal lugar mítico, há cem anos - e a empresa dona do ChatGPT lançou o desafio próximo ao aniversário da expedição.

A ideia da competição é usar o ChatGPT junto a bases de dados abertos, com imagens de satélite, diários coloniais, relatos orais indígenas, entre outros, para fazer descobertas em especial na Amazônia brasileira, mas também países vizinhos. A empresa vai distribuir US$ 400 mil (R$ 2,4 milhões) em prêmios, divididos entre dinheiro e créditos para usar a API do modelo de IA.
Mas grupos de arqueólogos protestam pelo fato de o desafio não mencionar diretrizes éticas para esse tipo de pesquisa, que incluem a busca de aval das populações locais. Uma convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho), formulada antes da popularização da IA, garante aos indígenas o direito à "consulta livre, prévia e informada" quanto a pesquisas que afetem seu território.

Em nota, a OpenAI diz que desenvolveu o desafio ao lado de acadêmicos a fim de "colocar a pesquisa genuína no centro" do projeto. A empresa afirma que os participantes vão utilizar exclusivamente dados que já são públicos e promete que o trabalho deles não será usado para treinar modelos de IA nem para fins comerciais. A dona do ChatGPT também afirma que vai continuar seguindo as leis brasileiras e em diálogo com as instituições.

Em um ofício enviado para a OpenAI, a secretária nacional de articulação e promoção de direitos indígenas do MPI, Giovana Mandulão, solicita detalhes sobre os critérios metodológicos e jurídicos que a empresa adotou. E pede que não se divulguem mapas com a localização de sítios arqueológicos "até que haja alinhamento com os órgãos competentes e com os procedimentos legais cabíveis". Em nota à Folha de S.Paulo, a pasta afirma que há diretrizes que regulamentam pesquisas do tipo e que é preciso garantir o respeito a essas normas.

As inscrições de projetos acabaram no dia 29 de junho, mas a OpenAI ainda não divulgou quem são os finalistas.

O concurso surge num momento em que a pesquisa arqueológica na Amazônia tem florescido e ajudado a reescrever a história da região, revelando a existência de populações densas e formas de urbanismo antes da chegada dos europeus.

O campo tem sido revolucionado por ferramentas como a tecnologia LiDAR (sigla em inglês para "detecção e alcance da luz"), que permite mapear vastas áreas de floresta, vendo estruturas ocultas pela copa das árvores - o desafio da OpenAI, aliás, emprega bases com imagens produzidas com esse recurso. A expectativa, entre entusiastas da inteligência artificial, é que os modelos levem esse tipo de pesquisa a um novo salto, analisando grandes quantidades de informação.

A competição, contudo, divide os cientistas brasileiros. Assim que foi anunciada, a SAB (Sociedade de Arqueologia Brasileira) divulgou uma nota crítica, reclamando que a região é palco de desinformação sobre cidades perdidas e que a menção à cidade Z contribui para isso, além de apontar a falta de consulta a indígenas, quilombolas e povos tradicionais.

"Realizar uma competição sem que haja concordância deles é altamente antiético", diz a arqueóloga Bruna Cigaran da Rocha, vice-presidente da SAB. "No Brasil, temos parâmetros que foram construídos com muito esforço sobre o patrimônio arqueológico e como ele deve ser estudado."

A SAB sustenta ainda que a pesquisa arqueológica no Brasil só pode ser feita por arqueólogos. A entidade encaminhou sua queixa não só ao governo, mas também ao Ministério Público Federal e ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Em nota, o Iphan fala em apreensão de que o concurso gere "efeitos práticos indesejáveis", levando ao reconhecimento de locais que não são sítios arqueológicos ou levando pessoas não autorizadas a acessar sítios verdadeiros.

Mas há pesquisadores que viram vantagens no desafio da OpenAI. O arqueólogo Francisco Pugliese, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, resolveu participar com um projeto - atualmente, ele faz pesquisas de campo no sudoeste amazônico.

"Essas novas tecnologias nos permitem articular muitos e muitos dados, abre um cenário de pesquisa fantástico", diz ele, que defende consulta prévia aos indígenas. "Se não tomarmos as rédeas desse processo, serão os arqueólogos que fazem uma ciência predatória. É nosso papel mostrar que essas ferramentas devem ser usadas com ética."

Pugliesi acredita que o alcance desse tipo de pesquisa pode auxiliar povos originários em pleitos como o direito à terra e demarcações. "Já sabemos que o sul da Amazônia é uma grande paisagem arqueológica, com conjuntos interligados de grandes complexos, que indicam um urbanismo pré-colonial. Identificar essa herança pode ajudar na aplicação correta das nossas leis sobre patrimônio arqueológico."