Vida na fronteira

‘As pessoas me olham feio, me sinto tratado como um cachorro’

Crianças venezuelanos relatam a O Tempo, por telefone, como tem sido viver em Roraima

Por Thuany Motta
Publicado em 23 de agosto de 2018 | 03:00
 
 
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Nos últimos dias, o país se deparou com vídeos de brasileiros cometendo atos de violência contra refugiados venezuelanos em Pacaraima, em Roraima, na fronteira com o país vizinho. Nas imagens, famílias inteiras voltavam à nação de origem cabisbaixas, carregando malas, bolsas e guardando a esperança de um futuro melhor.

Para as pessoas que conseguiram permanecer por aqui, a situação é desafiadora. Muitas delas, principalmente crianças, são vítimas das consequências traumáticas de uma mudança brusca de realidade. “Quando vou na rua com minha mãe pedir dinheiro, as pessoas me olham feio, fecham o vidro dos carros. Eu me sinto tratado feito cachorro”, disse o pequeno Delvi Zapata, 11, por telefone, de Boa Vista, à reportagem. Ele veio para o Brasil com o pai, a mãe e três irmãos, há 11 meses, fugindo do desemprego e da fome em seu país.

Ex-morador da cidade de Tucupita – uma comunidade indígena – o menino fala sobre a travessia. “A gente veio de ônibus, de carona e depois a pé. Foi quase uma semana de viagem”, diz. O pai de Delvi, que era pescador, agora faz bicos em Boa Vista para sustentar a família. A mãe, artesã, ajuda exercendo a sua profissão.

Delvi afirma que deseja voltar para a Venezuela um dia. “Quero aprender português e estudar para conseguir um bom emprego. Não vou deixar que a minha família continue vivendo assim”.

Fome e falta de produtos básicos de higiene e de medicamentos levaram a família de Arejelia Perez, 12, a abandonar tudo. “Dois meses atrás, meus pais conversaram comigo, dizendo que viríamos para o Brasil porque eles queriam uma vida melhor para mim e para meu irmão. Mesmo sentindo falta de lá, eu fiquei feliz, porque eu ia ter comida, ia ter tudo o que precisava”, conta a menina.

A experiência sacrificante influencia não apenas o presente, mas o futuro dessas crianças. “Quero ser enfermeira, porque assim vou poder ajudar as pessoas que passam dificuldade”, afirma Yoraina Mata, 10, que veio com a mãe, já que o pai e o irmão estão juntando dinheiro para se unirem às duas.

Natural de Delta Amacuro, Yoraina tem o sonho de retomar sua vida. “Sinto muita falta de nadar no rio, de brincar com os meus amigos, das aulas na minha escola e dos meus parentes”, diz Yoraina.

De acordo com Graziela de Carvalho, coordenadora pedagógica da Casa de Los Niños, que acolhe os refugiados em parceria com a ONG Visão Mundial, ações estão sendo realizadas para minimizar os impactos da travessia para o Brasil. Na última terça-feira, elas assistiram a uma exibição de cinema na cidade.

“O mais importante é ensinar às crianças o português para que possam se comunicar e ser matriculadas nas escolas. Além disso, as levamos a passeios culturais e ecológicos para que criem um vínculo com a população local e se sintam pertencentes à comunidade”, afirma.

 

Estresse extremo pode gerar traumas

As consequências possíveis dos traumas que envolvem a imigração vão além dos olhos, afirma psicóloga educacional Michelle Rocha. “Elas precisam passar por isso tudo praticamente sozinhas e à força, uma vez que não contam com quase nenhum apoio psicológico e suas famílias estão preocupadas em garantir a sobrevivência”, diz.

Transtornos de ansiedade, depressão e síndrome do pânico costumam ser quadros comuns. “Essas crianças são colocadas sob um estresse extremo, para o qual não estão nada preparadas. Tornam-se arredias, retraídas e até mesmo agressivas. É o modo de defesa delas”, afirma a psicóloga.

Para Michelle, o ideal é combater as sequelas o quanto antes. “É uma fase crítica, de formação da identidade. Agir rápido pode impedir que se tornem adultos ainda mais traumatizados”, pontua.

 

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