Rio de Janeiro

Decreto deixa dúvidas no ar

Forte presença do Exército nas ruas não deve compensar a falta de programas sociais


Publicado em 21 de fevereiro de 2018 | 03:00
 
 
 
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RIO DE JANEIRO. A decisão do presidente Michel Temer de confiar ao Exército o comando das forças de segurança do Rio de Janeiro levanta muitas questões sobre as consequências de uma medida considerada por seus críticos mais um projeto político. Além disso, o decreto, cujos detalhes ainda devem ser definidos, levanta preocupações quanto aos riscos, em um país que saiu de uma ditadura militar há apenas 30 anos.

O decreto foi descrito pelo próprio presidente Temer como “medida extrema”, que tem como objetivo conter a escalada da violência na capital e no Estado.

Mas muitos dos contrários à decisão consideram que essas medidas de segurança não podem substituir os programas sociais. “Não existe política social para as favelas. Sem saúde, sem educação, não chegaremos a lugar nenhum. Deveria haver ensino de qualidade, em tempo integral”, diz Marcos Valério Alves, que coordena as associações de bairro do Complexo do Alemão. “A criança depois da escola fica na rua. Fica ociosa, vendo outros jovens desfilando com fuzis. Que futuro ela espera ter?”, acrescenta, criticando a falta de vontade política.

Projeto político. Na avaliação da a socióloga Julita Lemgruber, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, o decreto foi adotado “para servir a um projeto político de Temer”. O presidente da República é acusado de desviar a atenção dos escândalos de corrupção e se mostra incapaz de fazer aprovar a reforma da Previdência exigida pelos mercados financeiros e pelos grandes empresários.

Alguns apontam até mesmo uma intenção de concorrer ao Palácio do Planalto em outubro, ainda que o presidente já tenha negado esse objetivo. “Temer nunca teve a popularidade tão baixa e quer se cacifar com essa intervenção para ver se pode se habilitar a ser candidato”, explica Julita, lembrando que o decreto expira ao final de seu mandato, em 31 de dezembro de 2018.

Com uma limitação de tempo para a intervenção do Exército, a socióloga acredita que, mesmo que uma melhor coordenação das forças de segurança possibilite uma luta mais eficaz contra a criminalidade em curto prazo, a população não deve esperar uma solução milagrosa no longo prazo.

Medo. Os moradores vivem a rotina de tiroteios diários, promovidos pelas guerras entre facções criminosas e incursões policiais. Além disso, muitos membros das forças de segurança são acusados de envolvimento com o crime organizado. “As pessoas têm cada vez mais medo. Por mais que seja apenas uma manobra não pragmática, para esconder a derrota na reforma da Previdência, quem está na linha de frente nos casos de abusos é o morador das zonas Norte e Oeste”, alerta o autor do livro “Rio em Shamas”, Anderson França, mais conhecido como Dinho em seu perfil no Facebook, onde faz crônicas sobre a vida cotidiana nas favelas.

“As intervenções militares na segurança do Rio de Janeiro sempre foram violentas, agressivas e repressivas. Não acredito que o Exército esteja lá para promover o diálogo”, diz ele, preocupado com a possibilidade de impunidade em caso de excessos. “O Exército não presta contas a ninguém, e os soldados só podem ser levados diante de tribunais militares, o que enfraquece as associações que têm o hábito de denunciar os abusos policiais perante o Ministério Público e a Corregedoria”, conclui França.

Sargento morto

O sargento do Exército Bruno Albuquerque Cazuca foi morto no fim da madrugada de terça-feira (20) em Campo Grande, zona Oeste do Rio de Janeiro. Por volta das 5h, ele reagiu a um assalto e foi baleado por criminosos na antiga Estrada Rio – São Paulo. Segundo testemunhas, cerca de dez criminosos participaram da ação. Eles dirigiam dois carros e renderam motoristas de outros quatro veículos. “O militar entrou em luta corporal com um dos bandidos e acabou sendo morto na nossa frente. Foram mais de dez tiros contra o sargento. Eles ainda saíram gritando que matam quem reage”, disse um funcionário da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que não quis se identificar.

Minientrevista

Carla Lisboa

Advogada e doutora em ciências criminais

Coord. Estadual do Inst. Bras. de ciências Criminais

A advogada criminalista e professora Carla Lisboa criticou, em entrevista à rádio Super Notícia FM, a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro.

Há questionamentos constitucionais sobre a intervenção federal. Eles são válidos? Sim. Nós observamos que, desde que ela foi anunciada, a primeira depois da Constituição de 1988, vários pontos estão sendo levantados. Um deles é se o interventor, por exemplo, poderia ser um militar. E, em termos de direito constitucional, há até, por se tratar de um assunto novo, um questionamento sobre qual seria o instrumento adequado para se avaliar a validade ou não dessa intervenção.

A atuação dos militares, do ponto de vista prático, é limitada? Precisamos distinguir a Polícia Militar, que é formada para a prevenção da criminalidade, das Forças Armadas, que não têm treinamento para trabalhar na prevenção e na repressão ao crime. Então, são dois pontos distintos que já tornam difícil a efetivação de qualquer combate. Mas é preciso destacar que, sempre que o Estado se esvai no poder, há uma tendência de ele reagir de forma violenta. O que vai acontecer é simplesmente deixar a população do morro no morro, e não no asfalto, como eles gostam de dizer. O que a gente observa é que está tudo muito concentrado nos morros do Rio. Você não ouve falar em intervenção na zona Sul ou nos bairros nobres. Em termos concretos, infelizmente, é uma medida que não vai resultar em nada no que diz respeito ao combate à criminalidade.

É possível que os criminosos do Rio tenham migrado.Em sua opinião, a Polícia Militar de Minas Gerais tem como garantir a proteção aos cidadãos e às divisas? Acredito que a Polícia Militar mineira tem condições, dentro do razoável, de evitar essa migração da criminalidade. Mas sabemos que nem tudo vai funcionar 100%. Há pessoas falando com muita preocupação nesse deslocamento do comando do crime organizado para outros Estados.

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no início, foram apontadas como sendo a salvação. Mas é possível ver que não foram exatamente isso. Onde está o erro nesse processo? A notícia que se tem é que elas falharam porque houve uma espécie de boicote dentro da própria estruturação das UPPs. Quando você tem ações que não são legitimadas pela própria comunidade, que não reduziram a criminalidade que se pretendia combater, e que houve uma pressão desarrazoada para cima daquela comunidade, o projeto, infelizmente, não alcança o sucesso esperado. Houve ali, no nosso entendimento, uma questão de perda de legitimidade de atuação das UPPs.

Há críticas ao presidente Michel Temer por não ter, supostamente, esgotado todas as opções até se chegar à intervenção federal. Que tipo de medidas o governo poderia ter tomado para não chegar a esse ponto? O próprio interventor federal disse que eles ainda estão se reunindo para estudar o fenômeno e, a partir disso, traçar uma estratégia de ação. Isso já existe: pessoas que estudam esse fenômeno, criminólogos, sociólogos, antropólogos. Vamos ter aquela história para “inglês ver”: sobe o morro, mata alguns, apreende um pouco de drogas, de armas, desce e diz que está tudo resolvido. Sabemos que não existe crime organizado sem a conivência do Estado e, para se desmantelar de fato, é preciso começar a trabalhar no ponto forte dele, não na parte de baixo, pegando o traficante pequeno.

A solução passaria por uma política, de fato, nacional de segurança pública? Já passou da hora. Esse assunto é muito sério para ser tratado como brincadeira como estão fazendo. Outro detalhe: no momento de uma grave recessão, há um custo altíssimo para o povo brasileiro, porque nós acabamos de ter notícias de que recursos de outras áreas serão desviados para essa intervenção. Segurança pública é hoje uma grande demanda do povo brasileiro, mas é um assunto que precisa ser tratado com muito cuidado. 

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