INÉDITO

Professora é a primeira travesti do país a atuar em universidade

Ela também é a única professora travesti com doutorado e falou com a reportagem sobre as expectativas na nova função em uma universidade pública federal

Por JULIANA BAETA
Publicado em 11 de dezembro de 2013 | 20:05
 
 
 
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Na última segunda-feira (9), o Brasil registrou mais um momento histórico na luta pelos direitos humanos e contra a intolerância. Foi empossada, na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no Ceará, a única professora travesti com doutorado do país. Desta forma Luma Nogueira de Andrade se torna a primeira travesti a integrar o quadro de docentes efetivos de uma universidade pública federal. Ela irá atuar pelo Instituto de Humanidade e Letras da instituição.

O fato inédito pode servir como exemplo e incentivar outras situações semelhantes no país, segundo a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). "Sem dúvida nenhuma esse é um momento de conquista e de vanguardismo, principalmente por se tratar de travestis e transexuais que são os integrantes da comunidade LGBT mais discriminados. Eles ficam completamente expostos e você sabe quando a pessoa é travesti, diferente de gays ou lésbicas", disse.

Segundo Berenice, há uma evasão muito grande nas escolas por parte dessas pessoas e isso faz com que o ingresso de travestis e transexuais nas universidades se torne cada vez mais escasso. "Não sobra muita coisa. Você não vê travestis em outros trabalhos, a não ser prostituição ou no salão de beleza. Eles não têm apoio da sociedade nem da família e isso faz com que as oportunidades para eles sejam reduzidas", explicou a advogada.

"Por isso o caso da Luma serve de exemplo sim, pra todo mundo ver que é possível chegar lá, apesar de todo o preconceito e dificuldades ao longo da vida. Serve de exemplo porque ela teve coragem pra passar por cima de tudo isso e buscar algo que ela queria para a vida dela. É muito perverso o que essas pessoas sofrem desde crianças, é quase impossível de sobreviver", disse ainda Berenice. 

A coordenadora especial de Políticas Públicas LGBT do Ceará, Andrea Rossati, também acompanhou a posse da professora e avaliou o momento como "caro" para Luma e para o movimento LGBT. "Temos que adestrar tigres e leões para vencer o preconceito, seja através da educação, da política e de outras formas. Todos os dias, devemos sensibilizar as pessoas sobre a importância de aprender a conviver com as diferenças”, disse.

Trajetória

Luma nasceu em Morada Nova, no interior do Ceará, criada por pais agricultores analfabetos. Ela concluiu o doutorado pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Cerará (UECE) em 2012, e continua a ser a única travesti do país a possuir o título, segundo a Unilab. Antes de se tornar parte do corpo docente da Universidade, ela era professora concursada da rede estadual de ensino e trabalhava como superintendente escolar da Secretaria de Educação do Estado do Ceará.

Ela também possui graduação em Licenciatura em Ciências pela UECE e mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. Além disso, foi a ganhadora do 2º Prêmio de Ciências do Ensino Médio em 2005, do Ministério da Educação, pelo projeto "Intimamente Mulher", que desenvolveu com o objetivo de levar adolescentes ao ginecologista. "Naquela época, no interior, as mães achavam que não precisavam levar as meninas ao ginecologista porque acreditavam que eram virgens", explicou a professora. 

Mini-entrevista

O TEMPO: Como você se sente sendo a primeira professora doutora travesti do Brasil?

Luma Nogueira de Andrade: Eu me sinto muito feliz e muito triste ao mesmo tempo. Feliz por ter conseguido um espaço de grande conhecimento na sociedade, e triste porque muitas das minhas colegas não tiveram a mesma oportunidade que eu, ou mesmo o acesso a escolas e a empregos socialmente aceitos.

As travestis que viveram na ditadura se impuseram perante a repressão para sobreviver e eu sou fruto dessas pessoas que resistiram. Tenho que respeitá-las e reconhecer que se hoje eu cheguei onde cheguei, é porque antes de mim existiram pessoas que deram as suas vidas e os seus sonhos para resistir e garantir o seu lugar, assim como acontece atualmente também.

OT: Você acha que isso pode abrir um precedente positivo para que outras travestis tenham as mesmas oportunidades?

LNA: Essa é a minha missão. Mostrar que é possível. Uma colega professora me contou de uma aluna travesti que ela tinha, que se espantou quando descobriu que a professora dela tinha uma colega professora travesti, que no caso era eu. A menina perguntou:´mas pode´?

Infelizmente essas pessoas incorporam o que a sociedade passa para elas, de que elas não são capazes, que não têm condições de serem aceitas. E aí elas acabam aceitando essa carapuça. Mas quando essa pessoa vê que alguém como ela conseguiu outro espaço, então ela começa a perceber que é possível. Você não precisa aceitar apenas os ´sonhos´ que a sociedade te dá de graça.

É por isso que uma das opções mais óbvias acaba sendo a prostituição. Nas décadas de 70 e 80 a família colocava essas pessoas para fora de casa, nenhum empregador aceitava, porque os clientes nem chegariam perto. Para sobreviver, eles tinham que buscar um meio de sobreviver e encontraram a comercialização do próprio corpo como recurso. Infelizmente, muitas travestis e transexuais passam pela mesma realidade nos dias de hoje.

Mas também, se essas pessoas, ou mesmo homens e mulheres se sentirem realizados na prostituição, que se realizem assim. O importante é a gente mostrar que eles tem outras escolhas, que este não é o único lugar pra eles.

OT: E o exemplo da sua conquista pode servir para ajudar a combater essa discriminação, de certa forma?

LNA: Serve, porque a partir do momento que mostramos que é possível ter essas conquistas dentro dessa cultura homogênea machista sexista que diz que a gente não tem condições de ir além e que enquadra homens e mulheres em modelos estipulados pela sociedade, nós quebramos essa ideia que as pessoas fazem sobre nós. Nós rompemos com o que elas querem que a gente seja, para ser simplesmente o que a gente quer ser. E isso faz as pessoas refletirem também, já que alguém como eu chegou no lugar que cheguei. Isso mostra que todos temos capacidade ou condições, e temos chegado lá por competência. É uma forma de modificar o preconceito sim.

OT: E porque ainda é difícil ver travestis e transexuais nas universidades?

LNA: A discriminação atual vem de uma repressão histórica. Houve um período em que o negro não tinha acesso a escolas, era escravizado. Foi parecido com a gente. Já existiram portarias e leis estaduais para proibir a presença de travestis nas escolas. Não é algo tão distante de hoje, ainda há fragmentos. E se essas pessoas não tinham acesso às escolas, como iriam aprender? Era uma homofobia institucionalizada pelo Estado. Devido a essa repressão é que hoje nós temos dificuldades ao acesso a escolas. Eu posso ter sido uma exceção, mas também tive muitas dificuldades, precisei resistir e me sujeitar muitas vezes. Há um pensamento que diz ´dois passos pra frente e um pra trás´, e a vida de quem é vítima constante do preconceito é o tempo todo dessa forma. Sempre há um recuo para se ter força para continuar a batalha.

OT: Na sua trajetória escolar esses recuos foram muitos? Você também foi muito discriminada até chegar onde chegou?

Quando eu era pequena, era muito espancada nos intervalos pelos meus colegas, porque eu sempre desempenhava o papel feminino e tinha uma afinidade muito grande com as meninas da sala. Por causa disso, os meninos não me aceitavam. E quando eu chegava na sala chorando depois do intervalo, a professora falava ´bem feito´. Eu era uma criança e nem sabia porque estava apanhando, porque era violentada daquela forma. Eu sabia que devia ter algo que eu fazia que era errado, mas não sabia o quê.

Mesmo quando eu passei em primeiro lugar em um concurso público, episódios de discriminação continuaram a acontecer. Quando fui assumir o cargo, os diretores da instituição disseram que não tinham vagas. Eu questionei, porque eram quatro vagas e a única que tinha passado era eu. Ficou claro que foi por preconceito, rejeição por eu ser travesti. Entrei em contato com a Secretaria de Educação e isso foi resolvido. Mas quando eu estava no meu estágio probatório, coloquei próteses de silicone, e pessoas ligadas à direção me denunciaram, dizendo que eu estava mostrando os seios pros alunos. Mas quando eu coloquei as próteses, eu fiquei tão preocupada com isso e com medo de sofrer represálias, que eu comecei a usar batas, tipo de médico, que encobriam os meus seios e disfarçavam qualquer volume. Quando ficaram sabendo, os próprios alunos fizeram um abaixo assinado dizendo que isso nunca tinha acontecido. Como o estágio era probatório, o que eu fizesse de errado serviria para me tirar dali, e foi comprovado que eu fui vítima de má fé e discriminação.

Estes são alguns casos de uma vida toda atrasada pelo preconceito. Sempre foi assim com travestis e transexuais, sempre temos que estar superando, provar que temos capacidade. E é isso que eu quero fazer como educadora. Quero preparar os alunos a lidar com as diferenças, principalmente, no que diz respeito ao mercado de trabalho.

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