“Fé na festa”. A frase, em letras garrafais em uma faixa exposta na fachada de uma casa em estilo barroco de Olinda, funciona como uma justificativa para o movimento de foliões que tomou as ladeiras da cidade histórica. Não muito distante, na avenida Boa Viagem, em Recife, o grito de “frevo” de um folião eloquente, antes mesmo das 6h da manhã no sábado de Zé Pereira, dia do tradicional Galo da Madrugada, reforça a crença exposta na faixa.

A celebração momesca é uma tradição e parte da identidade do povo dessas duas cidades desde o século XVII, como apontam pesquisadores. Durante sete dias, a reportagem de O TEMPO acompanhou parte do período festivo deste ano nesses dois destinos. Se o manual do jornalismo orienta que o tom pessoal deve ser evitado em reportagens, a exceção pode ocorrer em ocasiões especiais, como o Carnaval de Recife e Olinda.

Uma festa repleta de particularidades

Lembro-me da primeira vez em que “brinquei o Carnaval” em blocos de rua. A ocasião foi em 2015, quando a festa, ainda como um “ato de rebeldia”, insistia em retornar às ruas e avenidas de Belo Horizonte. Desde então, foram outros tantos carnavais em BH, Rio de Janeiro e São Paulo. Nada comparado ao que experimentei durante os sete dias de folia em Recife e Olinda.

Aqui não cabe a discussão sobre quem faz o melhor Carnaval no país – afinal, de forma muito particular, acredito que a festa transcende os inúmeros critérios do checklist que sustentam essa competição. No entanto, a festa pernambucana tem características peculiares que a diferem das minhas outras experiências. Entre elas, a variedade de ritmos, como o frevo, o maracatu, o manguebeat, o brega, entre outros.

Minha impressão se reforçou com as inúmeras conversas que tive com foliões locais e turistas que “maratonaram” entre as duas cidades. “O Carnaval está no sangue da nossa gente”, me disse uma foliona na Ponte Duarte Coelho, onde uma escultura de 32 metros do Galo da Madrugada foi erguida. “No Recife é diferente”, resumiu um turista carioca sobre o Carnaval na cidade.

Em outro ponto da folia, no Marco Zero, principal palco da festa recifense, um folião nascido em Recife resumiu a festa como o reencontro com a própria identidade. “É como se estivéssemos nos reencontrando com aquilo que a gente é”, disse quando o questionei sobre a relação das pessoas de Pernambuco com o Carnaval. Reencontro, por sinal, foi a palavra que encontrei para tentar definir, da maneira mais próxima da realidade, a relação dos pernambucanos com a folia.

É difícil colocar em um arranjo de palavras o que seria esse reencontro. Talvez algumas situações ajudem a compreender. Em um dos dias em que estive na capital pernambucana, acompanhei um grupo de artistas que se apresentou para alguns hóspedes de um hotel durante o café da manhã. Vestidos com roupas típicas do frevo e do maracatu, eles entoaram canções diversas para convidar as pessoas que ali estavam para o Carnaval.

Enquanto a interação entre artistas e hóspedes ocorria, era fácil perceber os funcionários do hotel cantando junto, em alto e bom tom. O mesmo se repetia nos diversos pontos de folia. As canções que exaltam Recife e Olinda, e outras composições locais, como o hino do Galo da Madrugada, empolgam e reverberam mais.

Contrastes

Uma festa de contrastes sociais. No Marco Zero, camarotes tomam prédios antigos e até mesmo estruturas provisórias. O preço para curtir os grandes shows nesses locais, que oferecem conforto, comidas e bebidas, parte do mínimo de R$ 500. A grande multidão, por sua vez, ocupa a praça e as ruas adjacentes ao grande palco. A cena também se repete em Olinda, onde o grande número de foliões contrasta com os camarotes em casarões antigos.

Convite para sentar à mesa

Ruas próximas aos locais da folia se tornam ambientes para diversos ambulantes, que instalam barracas onde são comercializadas bebidas e comidas. A variedade de sabores foi um dos destaques.

Confesso que, por vezes, a cena com tantas barracas e variedade de comidas parecia um convite para sentar à mesa e fazer uma refeição. O preço dos produtos também foi um ponto positivo. Espetinhos eram vendidos entre R$ 6 e R$ 10, cerveja entre R$ 8 e R$ 12, e água entre R$ 2 e R$ 5.

Além dos corredores gastronômicos, havia corredores com banheiros químicos – que ostentavam mensagens inclusivas e contra a homofobia. Não era preciso caminhar por um longo período para encontrar um desses corredores. Porém, muitos foliões optavam mesmo por urinar em locais abertos, próximos às paredes e árvores.

Multidão

“Onde se tem um palco, tem uma multidão”. Foi assim que uma ambulante me informou sobre o Carnaval em Recife logo nos primeiros dias na cidade. E ela não errou.

Em todos os lugares por onde passei, milhares de foliões. Afinal, seria complicado dispensar shows gratuitos de grandes artistas como Alceu Valença, Elba Ramalho, Alcione, Gloria Groove, Pabllo Vittar, Baiana System, Ferrugem, entre outros. Brincadeiras à parte, mas parecia realmente esse o pensamento de dezenas de pessoas que vibravam em uma noite com o som de Menos é Mais e retornavam no dia seguinte, com a mesma energia, para curtir Nação Zumbi.

Caminhar pela multidão foi, porém, um desafio. Por vezes, policiais tiveram que fazer “corredores humanos” para ajudar as pessoas a se deslocarem. Outro ponto foi a segurança. Felizmente, não presenciei episódios de furto ou roubo. Cenas de brigas, no entanto, se repetiram em cada uma das noites, sendo que, em algumas, foi necessária a intervenção policial.

É bom para paquerar?

Minha experiência em Recife e Olinda deu match – expressão utilizada em aplicativos de relacionamento quando pessoas demonstram interesse uma pela outra. Para responder à pergunta, inclusive, repetiria aquilo que me disseram logo quando desembarquei na cidade.

“Em Recife as pessoas irão curtir mais os shows, mas você, certamente, vai ter um lance com alguém. Agora, em Olinda, é o pecado”.

Voltaria?

Como disse no começo deste texto, acredito que não se define um Carnaval com base nos diversos critérios do checklist que busca instigar qual é a melhor folia do país. Embora questões como segurança, alimentação, preço e transporte sejam importantes para a escolha do local para “brincar o período momesco”, acredito que o ápice da festa se dá pela celebração da cultura e da identidade regional.

Recife consegue, porém, atender de forma muito satisfatória a esses requisitos. A mesma impressão tive de Olinda, por onde passei um dos sete dias em Pernambuco. Além disso, as cidades entregam aos foliões algo que, para mim, se diferencia de muitos carnavais pelo país: identidade.

Até breve, Carnaval de Recife! Logo nos reencontraremos, e “cantarei a ti” que foi a “saudade que me trouxe pelo braço”.