Após viver o trauma de perder o filho de 14 anos para um disparo acidental ocorrido durante uma “brincadeira” com um amigo, uma mãe de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, precisou esperar por mais de 12h para que o corpo do garoto fosse removido e encaminhado ao Instituto Médico-Legal (IML). Assim como essa família, várias outras têm passado por situações semelhantes, já que só dois rabecões estão atendendo cerca de 50 municípios da Grande BH e da região Central de Minas Gerais. Há pelo menos cinco veículos passando por manutenção. O sofrimento da mãe do adolescente de 14 anos e de várias outras famílias pode causar traumas para toda a vida. “Essa exposição prolongada ao sofrimento, à dor, ao desamparo, especialmente em público, não só aumenta a dor emocional, como também pode trazer marcas traumáticas”, considera a psicóloga Mirian Anjos. Diante desse cenário, deputadas estaduais farão uma representação no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) para cobrar a adequação na prestação do serviço.
Após denúncia do Sindicato dos Servidores da Polícia Civil no Estado de Minas Gerais (Sindpol), a reportagem de O TEMPO conversou com uma fonte da instituição policial ligada ao gerenciamento dos rabecões. Ele confirma que, no momento, existem dois rabecões atuando em todos estes municípios. “A Polícia Civil não trabalha com manutenção periódica, apenas com consertos. Um desses dois veículos acabou estragando e, por isso, todos os municípios contaram com um único rabecão nos últimos dias”, detalhou o agente, que terá a identidade preservada.
Em nota, a instituição policial informou que o serviço segue sendo prestado diuturnamente, nos sete dias da semana. A Polícia Civil, no entanto, não disse quantos rabecões existem no Estado e admitiu que parte dos veículos está parada em oficinas passando por manutenção.
Perigo para os motoristas
Por conta da falta de manutenção, ainda conforme o policial, o estado dos carros é “deplorável”, especialmente por cada um deles rodar, em média, de 400 a 600 quilômetros por dia. “Já aconteceu de o freio não funcionar comigo. Há retrovisores improvisados, pneus carecas”, descreve. Atuando muitas vezes em cidades bem distantes umas das outras, os corpos acabam ficando muito tempo nas carrocerias dos rabecões que não são refrigeradas. “Às vezes demora tanto, porque ainda tem que fazer a necrópsia, que é difícil até para velar o corpo”, lembra.
A ausência de sirenes nos veículos é outro ponto levantado pelo agente que contribui para o “atraso” nas remoções dos corpos. “As pessoas acham que não faz falta, mas em um acidente de trânsito, em que o corpo é que está impedindo o fluxo, é o rabecão que tem que chegar. Além de que haveria mais celeridade no serviço”, complementa.
O presidente do Sindpol, Wemerson Oliveira, reforça as denúncias do agente ouvido pela reportagem sob anonimato. “Isso se deve à falta de manutenção preventiva e, até mesmo, a corretiva desses veículos. Para você ter ideia, estes rabecões foram comprados a partir de 2012 ou 2013. Desde então não teve substituição, ou seja, são veículos que têm mais de 10 anos de uso, né? E são veículos que rodam muito, principalmente agora, com o aumento do número de homicídios, eles acabam rodando ainda mais”, denuncia o representante da categoria.
Sozinhos, motoristas contam com famílias para carregar corpos
Além de todas essas questões envolvendo a falta de manutenção dos veículos, um outro policial civil ouvido por O TEMPO também pontuou que os motoristas dos rabecões trabalham sozinhos, fazendo com que, em alguns casos, seja preciso pedir ajuda de pedestres ou de familiares das vítimas para auxiliar a colocar os corpos dentro dos veículos. “Imagina um pai ou uma mãe ajudando a colocar o corpo do filho em um rabecão. Isso acontece toda semana”, revela.
Ainda segundo ele, a situação ficou ainda pior quando o Estado retirou a insalubridade para quem trabalha no serviço de remoção de corpos. “Muitas pessoas acham que não vale a pena, já que há perigo de contágios, por exemplo”, disse.
Polícia Civil prepara aluguel de rabecões
Questionada sobre o problema, a assessoria de imprensa da Polícia Civil informou, por nota, que já celebrou um contrato específico de locação dos rabecões, que se encontra na fase de implementação. A medida teria o objetivo de “ampliar e modernizar a frota de rabecões".
Ainda no posicionamento, a instituição disse que o serviço dos rabecões é prestado “de maneira ininterrupta, 24h por dia, sete dias por semana”. Apesar disso, a instituição assumiu que parte de sua frota se encontra em manutenção nas oficinas credenciadas, que trabalham em “regime de prioridade para atender as demandas”.
A Polícia Civil também foi indagada sobre as denúncias dos policiais acerca das condições dos veículos; da necessidade de familiares ajudarem na remoção dos corpos das vítimas; da demora na manutenção dos rabecões e sobre a retirada do adicional de insalubridade para os motoristas. Entretanto, até a publicação da reportagem, a instituição ainda não tinha se manifestado sobre as denúncias.
Dor de “velar corpo na rua” pode tornar o luto ainda mais difícil
A psicóloga e especialista em Terapia Cognitivo Comportamental e Psicopatologia, Mirian Anjos, considera que esperar horas pelo rabecão pode “tornar o luto mais doloroso”. “Quando a família precisa se expor a essa situação da espera, por horas, velando o corpo, às vezes, na rua, exposta, isso pode intensificar a sensação de desamparo e indignação e revolta, que intensifica os sintomas do luto. Ela complementa que “essa exposição prolongada ao sofrimento, à dor, ao desamparo, especialmente em público, não só aumenta a dor emocional, como também pode trazer marcas traumáticas”.
Conforme a especialista, “as pessoas que vivem situações de morte de alguém próximo e são expostas muito tempo àquela situação, conforme estudos comprovam, há uma probabilidade maior do desenvolvimento de sintomas do transtorno do estresse pós-traumático”. Os sintomas podem incluir insônia, flashbacks, e o reviver a situação como se ela estivesse ocorrendo naquele momento.
Mírian destaca ainda que a família pode se sentir desassistida, já que a situação de espera é extremamente dolorosa. “A despedida acaba sendo marcada por essa humilhação. A agilidade nos serviços, e a criação de condições mais humanas para essa situação fazem toda a diferença. Para que essas pessoas possam viver, passar por essa fase com um pouco mais de dignidade e, se possível, diminuir o sofrimento”, finaliza.
Após fiscalização de deputadas, ALMG terá audiência sobre tema
Na última quarta-feira (27 de novembro), as deputadas Bella Gonçalves (PSOL) e Lohanna França (PV) fizeram uma vistoria em uma das oficinas onde estão parte dos rabecões estragados. Após a fiscalização, elas solicitaram uma audiência pública para discutir o tema, que será realizada no próximo dia 6 de dezembro.
A chefe da Polícia Civil, Letícia Gamboge, e a secretária responsável pela Secretaria de Estado de Planejamento (Seplag), Luiza Barreto, serão convidadas. Isso porque, além da questão da instituição, há reclamações com relação aos repasses da Seplag para a manutenção dos veículos.
Em entrevista, Bella Gonçalves relatou que, em um dos pátios visitados, três rabecões estavam esperando manutenção. “Estavam empoeiradas e, há cerca de três meses no local”, contou a deputada. Já no pátio do Detran, foram vistos quatro veículos. “Um deles estava recebendo baixa, porque não havia recuperação para o motor”, disse a parlamentar.
“A Polícia Civil tem um tempo que está cada dia pior, mas não é culpa deles, pois é o Estado que não põe dinheiro. Gastam dinheiro com o que dá visibilidade, e pegar cadáver não dá visibilidade”, pondera a deputada Lohanna França.
Para além da audiência pública, as parlamentares também farão uma representação também será feita no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). O questionamento é sobre a não prestação do serviço de remoção de corpos, além das questões de precariedade de viaturas, entre outras irregularidades.