A pouca luz que vem do corredor e alcança Elizete Paula Diniz durante a noite é suficiente para que ela coloque no papel seus poemas. Durante o tempo em que ficou na cadeia convencional, seu talento, assim como ela, acabou aprisionado. Foi só depois de chegar à Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) de Belo Horizonte que a escritora, de 42 anos, conseguiu voltar a compor versos. “Foi como ver o tamanho do céu. Eu estava enterrada viva”, afirma ao descrever sua mudança da prisão para a associação, onde hoje cumpre a sentença.

Elizete é uma das recuperandas que encontraram na unidade o caminho para a mudança de vida. Nas oito Apacs femininas de Minas Gerais, 481 mulheres fazem cursos e oficinas, 385 participam de projetos e programas, e 422 comparecem a palestras. A mesma recuperanda, inclusive, pode integrar mais de uma atividade. No total, há 547 internas nas unidades exclusivas para mulheres. 

Elizete, por exemplo, além de escrever, já se profissionalizou. “Aqui, na Apac, fiz curso de teatro, sou montadora de drywall e costureira, além de poeta. Meus livros estão com a direção para a publicação”, detalha, orgulhosa, após declamar um poema que escreveu pouco antes da entrevista. “Ela (Apac) sustenta nossos pensamentos./ Para o bem-estar da humanidade./ E nos acolhe de verdade”, diz a poesia.

Mas não basta o acolhimento. É preciso um olhar para além das grades e, por isso, a metodologia da Apac tem como pilares o trabalho e o estudo. Todas as internas obrigatoriamente precisam estar envolvidas em atividades para permanecer nas unidades.

“Essa abordagem não só promove a recuperação individual, mas também contribui para uma transformação mais ampla da sociedade, promovendo a igualdade de gênero e a justiça social”, explica Tatiana Flávia Faria de Souza, que é diretora geral da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (Fbac) – entidade que coordena e subsidia as Apacs.

O presidente da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis) e do Conselho Administrativo da Fbac, Luiz Carlos Rezende e Santos, atrela oportunidades ao abandono efetivo do crime. “O índice de reincidência é de cerca de 2%, e há uma reconciliação com a família. É uma alternativa que abrange a dignidade das mulheres como um todo”, ressalta.

Foi essa oportunidade de trabalhar que contribuiu para que Kelly de Freitas, 40, abandonasse o vício nas drogas e começasse, de dentro da Apac, a constituir um lar. Ela já havia passado pelo sistema convencional e sofrido com a escassez de oportunidades.

“Eu ficava mais na minha, nesse tempo não trabalhei, e meu pertence era a alimentação que meu marido me enviava”, contou, sentada em uma mureta perto do local onde está se especializando em panificação por meio de uma parceria da Apac com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). Ela também fez curso sobre drywall, mas é a panificação que faz parte dos planos futuros dela. “Futuramente, aqui mesmo, dentro da Apac, vamos fazer pães para fora. Uma renda extra”, conta.

Afetividade

Para além do trabalho, Kelly, assim como Elizete, também se beneficia de outro pilar da metodologia Apac: a reconstrução de laços familiares. Na cadeia, a poeta nunca tinha recebido visita.

“Tudo era frio, não só as paredes, mas as pessoas”, descreve. Na Apac, ela diz que não tem como sentir solidão. “Mesmo quando uma recuperanda não te acolhe, a casa te acolhe. Acolhe totalmente. Eu não tenho mãe biológica, minha mãe já faleceu. Eu falo que Apac é minha mãe lógica”, define.

Nos três primeiros meses deste ano, conforme informações da Fbac, as recuperandas receberam 2.072 visitas sociais. Em 6.966 ligações telefônicas, no mesmo período, elas tiveram a oportunidade de ter notícias dos familiares e amigos. A tecnologia também é usada nesse movimento de reaproximação com os parentes. No total, 1.611 internas conseguiram fazer chamadas de vídeo. 

No caso de Kelly, os laços familiares se estreitaram tanto que ela até se casou dentro da unidade. Diferentemente da maioria das presas, que são abandonadas pelos companheiros, como já mostrado nesta série de reportagens, o marido de Kelly não a deixou e foi atrás dela em uma prisão de Vespasiano, na região metropolitana de BH. Ela foi a primeira recuperanda da unidade na capital a conseguir uma autorização para se casar no cartório. E não parou por aí. A cerimônia religiosa aconteceu dentro da unidade. “Os diretores chamaram o padre, enfeitamos tudo. Coloquei vestido de noiva. Meu filho veio me maquiar, trouxe meu vestido, e minha filha entrou de noivinha”.

Após passar um período morando na rua, imersa nas drogas, Elizete hoje tem orgulho de sua recuperação. Ela ainda precisa acabar de cumprir pena pela condenação envolvendo um homicídio, mas, agora, já tem casa e não pretende mais ficar ao relento. “Já aluguei meu barraquinho, comprei meus móveis e quero recuperar o tempo perdido com minha mãe, que já tem 85 anos”, planeja. 

Detentas recebem capacitação e são conectadas com empresas

A capacitação dentro do sistema prisional é importante, mas criar oportunidades para além das grades é essencial. Caso contrário, a rua pode se tornar morada das egressas, o que abre espaço para a volta ao crime por sobrevivência.

Um cenário bastante comum, como mapeado pela presidente da Associação Mineira de Educação Continuada (Asmec), Andrea Ferreira. “Em um primeiro momento, eu fiz uma pesquisa para saber qual público era mais necessitado de ajuda e vi que eram os egressos do sistema prisional. Porque existiam outras instituições que ajudavam outros grupos, mas ninguém olhava para detento. Aí, quando saiu o Censo de População de Rua, no início dos anos 2000, foi constatado que 40% das pessoas em situação de rua eram egressas do sistema prisional. Foi aí que ampliamos para quem estivesse em vulnerabilidade”, explica.

A Asmec capacita e conecta quem precisa de trabalho com os empregadores. Uma iniciativa que ajuda a quebrar a grade invisível da exclusão no mercado de trabalho.

Com a mesma visão, a Defensoria Pública de Minas Gerais lançou o projeto Reconstruir, para capacitar mulheres presas como alternativas de reinserção no mercado de trabalho por meio de atuação na construção civil.

“Há um preconceito na sociedade para dar empregos a egressas. Por isso, a gente identifica as mulheres que carecem e querem essa oportunidade para ensinar e depois as conectar com empresas para contratação”, explica o chefe da Coordenadoria Estratégica do Sistema Prisional da Defensoria Pública, Leonardo Bicalho de Abreu.