“Me lembro de tudo perfeitamente, como se fosse ontem”. Assim, Ana Clara Santos, a um mês de completar 16 anos, inicia sua entrevista sobre o dia que arrancou o pedaço mais importante do seu coração. No dia 3 de julho de 2014, a mãe dela, Hanna Cristina dos Santos, de 24 anos, morreu após a queda do viaduto Batalha dos Guararapes, na Avenida Pedro I, na região de Venda Nova, em Belo Horizonte. Com apenas 5 anos e dentro do micro-ônibus que a mãe dirigia, a adolescente conta que viu Hanna salvar a vida dela e de outras pessoas. Poucos segundos antes das toneladas de concreto mal-projetado despedaçarem, a condutora pediu que a filha fosse ficar ao lado da tia, que era a cobradora do coletivo.

“Na idade que estou agora, queria ter minha mãe para me aconselhar. Meu pai, minha avó, minha madrinha, são o meu porto seguro, mas mãe é mãe, né? Crescer sem mãe… toda criança precisa ter esse apoio, e eu não tive porque tiraram ela de mim. Ela não me viu fazer 15 anos, não vai me ver casar. Nada vai trazer ela de volta”, disse, emocionada, em entrevista a O TEMPO.

Apesar de jovem, Ana Clara já tem idade suficiente para se indignar com o que aconteceu com ela e com a mãe. Após dez anos do desabamento, nenhuma indenização foi paga, e os culpados condenados, em primeira instância, respondem a sentença em liberdade, conforme o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). “Nunca mais vou ter ela de volta, dinheiro nenhum, nada vai trazer ela de volta. Mas, com toda certeza, eles (autoridades e engenheiros) têm filhos, mãe e esposa. Então, queria que se colocassem no meu lugar, que pensassem em mim. Mesmo depois de todo esse tempo, o que eu quero é Justiça por ela”, completa a filha de Hanna.

Medo de passar sob viaduto continua

A adolescente revelou ainda que, mesmo dez anos depois da tragédia em sua família, a angústia de passar sob viadutos continua. “Eu me lembro certinho a hora que estava passando com a minha mãe ali em baixo, da hora que ela mandou eu ir para perto da minha tia. É horrível ainda para mim passar por viadutos”, lembra Ana Clara.

O medo de Ana Clara pode ser explicado pela psicologia. O psicólogo Thales Coutinho explica que, mesmo em pessoas que não tiveram relação direta com o desabamento do viaduto, é comum que eventos traumáticos como este produzam sequelas, como o medo de se passar embaixo dessas estruturas urbanas. “A destruição de um prédio, ponte ou coisa parecida, mesmo que pela força da natureza, abala uma característica da vida em sociedade, que é a confiança na estabilidade das coisas. A gente confia que essa estrutura vai funcionar adequadamente e, quando isso não ocorre, mostra que essa nossa confiança que nós podemos ter nos objetos e nos monumentos, acaba não sendo tão real quanto a gente pensa. É claro que a destruição desses bens públicos é uma exceção, a maior parte dos viadutos não cai, mas, quando um evento desse acontece e acontece próximo da gente, abala a nossa convicção nas coisas”, explica.

Relembre detalhes da queda do viaduto Batalha dos Guararapes

O desabamento

O viaduto Batalha dos Guararapes, que ainda estava em construção, caiu no dia 3 de julho de 2014, na Avenida Pedro I, na região Norte de Belo Horizonte. Um micro-ônibus da linha 70 que passava pelo local teve a frente esmagada, e a motorista do veículo, Hanna Cristina dos Santos, que tinha 24 anos, morreu na hora. Charlys Frederico Moreira do Nascimento, 25, passava de carro pelo local e também perdeu a vida. Seis operários que trabalhavam na estrutura e 17 passageiros do coletivo ficaram feridos. A alça sul do viaduto começou a desmoronar por volta das 15h05 e demorou 8 segundos para tocar o chão. A construção do viaduto fazia parte do pacote de obras pensado para a realização da Copa do Mundo de 2014.

As vítimas da queda

Duas pessoas morreram e outras 23 ficaram feridas.  A motorista do micro-ônibus, Hanna Cristina dos Santos, tinha 24 anos à época e morreu antes mesmo da chegada do socorro. O motorista do Fiat Uno, Charlys do Nascimento, também foi esmagado pela estrutura; ele tinha 25 anos.

Implosão do viaduto

Dois meses após o desabamento, no dia 14 de setembro de 2014, o que ainda havia restado do viaduto foi implodido.

Por que o viaduto Batalha dos Guararapes caiu: o que diz o inquérito da Polícia Civil

A Polícia Civil indicou que vários fatores contribuíram para a queda da estrutura, como desrespeito às normas mínimas de segurança e omissão dos órgãos responsáveis pela fiscalização. Houve um erro em relação à quantidade de ferragem que deveria ter sido colocada na fundação do bloco de fundação da alça sul do viaduto, para que a estrutura suportasse a pressão. O afundamento do pilar causou a queda do viaduto, conforme laudo do Instituto de Criminalística da Polícia Civil de Minas Gerais. Técnicos da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) alertaram os engenheiros da Cowan, responsável pela construção, e da Consol, responsável pelo projeto, sobre os erros. No entanto, a Prefeitura de Belo Horizonte não paralisou a obra. Segundo a Polícia Civil, a Sudecap sabia dos erros desde 2012. A Polícia Civil indiciou 19 pessoas, incluindo o secretário de Obras e Infraestrutura da Prefeitura de Minas Gerais.

Denúncia do Ministério Público

Conforme a denúncia do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a queda do viaduto foi ocasionada por vários fatores: "Erros e omissões grosseiras, descaso com o dinheiro público, irresponsabilidade de quem devia zelar pela segurança, aceitação de riscos, negligência na fiscalização, pressa e urgência desmedidas, já que a Copa do Mundo se aproximava".

Ainda de acordo com o MPMG, “a urgência era perceptível e a Sudecap, que nada fiscalizava de fato, queria somente que as empresas se entendessem e tocassem o projeto”. O MPMG alegou também que "os elementos probatórios colacionados ao inquérito civil evidenciam que uma sucessão de fatores redundou no desabamento do Viaduto Batalha dos Guararapes, começando pelas falhas técnicas cometidas pela Consol na elaboração dos projetos, passando pela execução defeituosa das obras por parte da Cowan e encerrando-se na omissão da Sudecap (Superintendência de Desenvolvimento da Capital) quanto ao cumprimento do dever fiscalizatório", justificou.

Condenações

De acordo com informações do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em dezembro de 2020, a juíza Myrna Monteiro Souto, da 11ª Vara Criminal de Belo Horizonte, condenou cinco engenheiros por crime culposo pela queda do viaduto, com penas que variam de 2 anos e 7 meses a 3 anos e 1 mês de prisão. Porém, foi concedido o direito de substituição pela pena restritiva de direito. Com isso, cada um deve pagar 200 salários mínimos aos dependentes das duas vítimas mortas e outros 50 salários mínimos para cada uma das 23 vítimas lesionadas.

Um engenheiro da Cowan não teve direito à substituição e foi condenado por crime doloso (dolo eventual) a 4 anos e 8 meses de prisão. Ele era responsável pela fiscalização da obra e foi avisado, antes da queda, sobre os estalos. “Ele deveria ter interrompido o trânsito, evitando assim que vidas fossem ceifadas e lesionadas”, disse a juíza.

Os condenados são diretores, coordenadores técnicos e engenheiros responsáveis pelas construtoras Cowan S.A. e Consol Engenheiros Consultores Ltda., além de supervisor, diretor e secretário de Obras e Infraestrutura da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), responsável pela gestão do setor em Belo Horizonte.

Ao longo do processo, dois profissionais que trabalhavam na Cowan morreram. Já um boliviano que mora em outro país teve o processo desmembrado. Outros dois funcionários da Cowan e um da Sudecap foram absolvidos por falta de provas da responsabilidade deles em relação à queda.

Ainda conforme a decisão judicial, os seis condenados estão proibidos de exercer a profissão por tempo igual ao período de condenação. Já o secretário de obras teve suspenso o direito de exercer cargo público. Todas as penas serão cumpridas em regime inicialmente aberto.

Segunda instância

Após a decisão, o MPMG recorreu ao Tribunal de Justiça, mas a apelação ainda não foi concluída em segunda instância. Segundo o TJMG, entre os pedidos do órgão está o aumento da reparação pela morte das vítimas, fixando o valor de 600 salários mínimos divididos para cada um dos parentes próximos.

O MPMG ainda ajuizou ações civis públicas solicitando o ressarcimento de R$ 33 milhões por prejuízos materiais. A Construtora Cowan, uma das empresas responsáveis pela construção da estrutura, um engenheiro e mais cinco herdeiros de outros funcionários são responsabilizados pelos danos. Não há uma decisão final sobre esses pedidos.

O que disse a Consol

A Consol Engenheiros Consultores Ltda, em nota, afirmou que já prestou todos os esclarecimentos à Justiça e à Prefeitura de Belo Horizonte sobre o projeto do Viaduto Batalha dos Guararapes. A empresa afirmou que não participou do controle de qualidade da execução do viaduto e, por ser projetista, também não participou da sua construção.

“Vale ressaltar que a CONSOL participou da Supervisão e do Controle de Qualidade no início da execução das obras de duplicação da Avenida Dom Pedro I. Durante o período em que participou, não ocorreu nenhum problema técnico nas obras dos viadutos, passarelas e trincheiras executadas. O contrato encerrou antes mesmo do início da edificação do viaduto Batalha dos Guararapes”, afirmou.

O que disse a Cowan

“A Construtora Cowan S/A registra que nunca foi condenada em definitivo em nenhum dos processos que tramitam sobre o assunto da trágica queda do Viaduto Batalha dos Guararapes. E mais, a Construtora Cowan não tem medido e não medirá esforços para comprovar sua inocência neste evento, que ocorreu em razão exclusivamente de uma falha do projeto executivo elaborado pela CONSOL, contratado pela Prefeitura de Belo Horizonte, conforme já constatado em inúmeros laudos periciais e técnicos, incluindo o laudo técnico do instituto de Criminalística de Minas Gerais.”

(Com informações de Aline Diniz e Juliana Siqueira)