O medo de julgamento, a dependência financeira e o receio de uma vingança e, com isso, de serem ainda mais agredidas são alguns dos motivos, segundo a Polícia Civil, que fazem com que muitas mulheres deixem de denunciar casos de violência doméstica. A situação tem como consequência a subnotificação de casos. Contudo, a qualidade do atendimento e a falta de policiais nas delegacias também contribuem para o problema, segundo especialistas.
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Se a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, em Contagem, inaugurada em 2023, que teve visita da reportagem de O Tempo autorizada pela Polícia Civil, mostrou um combo positivo de estrutura física e profissionais qualificados, com psicóloga e assistente social, a maior parte das 71 – média de uma para cada 12 cidades – delegacias de Minas Gerais especializadas no atendimento de mulheres vítimas de violência não atende a essas necessidades.
Na Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerância (Demid) de BH, inaugurada em 2009 e que, só no ano passado, fez 15.404 atendimentos, o principal problema é, justamente, o acolhimento. “Elas (as vítimas) relatam que há descaso, muita demora e algumas até relataram caso de piada com a situação delas”, conta a assistente social Cláudia Oliveira, fundadora da ONG Filhas de Sara, que apoia mulheres agredidas.
Ariane Martins, presidente da Comissão de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Subseção Contagem, reforça o coro. “As mulheres ficam o dia todo esperando. Muitas não têm dinheiro e não comem nada. Acabam desistindo”, diz.
Um ponto que também atrapalha é a falta de profissionais, principalmente no interior do Estado. “Sem o número suficiente de investigadores, o índice de violência doméstica permanecerá alto, já que o abusador continuará praticando atos se não for detido (após uma investigação)”, completa Wemerson Oliveira, presidente do Sindicato dos Servidores da Polícia Civil (Sindpol-MG). Segundo ele, na Demid, trabalham seis investigadores, oito escrivães e quatro delegadas, uma estrutura que deveria ser dez vezes maior para atender à demanda. “É algo que está caótico”, afirma.
Melhoria. A própria Polícia Civil confirma que há subnotificação de casos, mas alega que atua para revertê-la com a criação de ambientes mais humanizados, como a Casa da Mulher Mineira, aberta em 2022, local onde as vítimas podem pedir medida protetiva, exame de corpo de delito e até roupas, calçados e itens de higiene. Lá, já foram realizados mais de 15,3 mil atendimentos desde a inauguração.
“Temos ainda a brinquedoteca, onde as crianças ficam enquanto as mães são atendidas. Assim, a Casa da Mulher é um exemplo de como a Polícia Civil tem buscado, cada vez mais, entregar esse acolhimento humanizado”, declarou Ana Paula Balbino, delegada titular da Casa.
Procurada, a Polícia Civil informou que, “somente em 2023, foram destinados mais de R$ 5 milhões para a aquisição de equipamentos e sistemas de inteligência e tecnologia, revitalização de delegacias e formatura e posse de 1.430 novos servidores”, entre outras ações nas delegacias do Estado.
PM acompanha vítimas
Desde sua criação, em 2017, a 1ª Cia. Independente de Prevenção à Violência Doméstica da Polícia Militar de Minas Gerais já realizou mais de 82.800 atendimentos de vítimas e agressores (cerca de 30 por dia no período) em BH, onde o agrupamento atua.
Defendido pela corporação como o único serviço de PM no Brasil voltado para mulheres e suspeitos em casos de violência doméstica, o acompanhamento policial tem início até duas semanas após o registro policial de agressão, quando vítimas de casos mais graves são selecionadas para receber a visita humanizada de uma agente feminina, que apresenta a Lei Maria da Penha, conforme explica a tenente-coronel Ivana Ferreira Quintão, responsável pela 1ª Cia.
“A mulher é ouvida e direcionada para outros órgãos”, explicou Ivana. O suspeito do crime também é acompanhado e orientado preventivamente, em uma espécie de monitoramento “conjunto”, mas os envolvidos são atendidos em ambientes separados. A proposta é evitar a reincidência. Ivana explica que a 1ª Cia. mantém indicadores internos sobre os resultados do trabalho especializado, mas o repasse à reportagem não foi autorizado.
De acordo com Juliana Martins, coordenadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o combate à violência doméstica é fortalecido quando esferas públicas variadas, como a própria polícia e o Judiciário, promovem iniciativas de enfrentamento. “Se esse é um crime específico, já que é dentro do lar, e não de um criminoso nas ruas, o acolhimento também deve ser diferenciado”.
Força para superar violência e dar apoio
Na ONG Filhas de Sara, criada em 2016, mulheres têm desde cestas básicas até apoio para recolocação profissional, gratuitamente. Desde a inauguração, cerca de 450 famílias já foram atendidas no local. Uma delas foi a da professora de ensino fundamental Ana Paula Batista, de 37 anos.
Agredida pelo ex-parceiro, Ana nunca conseguiu denunciá-lo, mas se viu livre quando ele faleceu, em 2019. Ela se reergueu e hoje, além de atuar na rede de ensino, ensina o básico de leitura e escrita para idosas impedidas de aprender pelos maridos agressores.
"Já atendi avó, mãe e neta que repetiram (o ciclo de violência). Por isso, a gente vai às escolas para falar sobre como evitar ou sair de relacionamentos abusivos. Há meninas de 13 anos que já sofrem, cujos ‘namoradinhos’ quebram o telefone, rasgam a roupa. Muitas aceitam porque viram o pai, o avô fazendo e acham que é natural.” Cláudia Helena Oliveira, atua com mulheres vítimas há 20 anos
Sejusp-MG. Procurada, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança de Minas Gerais informou que acompanha diariamente os índices de criminalidade, incluindo feminicídio e violência doméstica, nos 853 municípios mineiros, em busca de estratégias integradas que possam minimizar ou reduzir os impactos da ação criminosa em todo o Estado.
Segundo a pasta, entre as ações para prevenir e reprimir a violência doméstica estão os Programas Central de Acompanhamento de Alternativas Penais (Ceapa) e o Mediação de Conflitos. “É importante destacar que Minas Gerais é um dos primeiros Estados do país a implantar o monitoramento 24 horas por dia de agressores punidos pela Lei Maria da Penha”, disse em nota.