A chegada das férias escolares de julho preocupa autoridades quanto ao aumento de uma brincadeira que pode matar: soltar pipa com o uso de cerol ou linha chilena, prática proibida em Minas Gerais. As principais vítimas costumam ser motociclistas, que, atingidos em áreas vitais do corpo, podem ficar com sequelas ou até perder a vida. Em Belo Horizonte, a apreensão desses materiais subiu 46% neste ano, proporcionalmente, em relação a 2023.
Neste primeiro semestre, a Guarda Civil Municipal (GCM) recolheu 587 carretéis de linha chilena ou com cerol na cidade, uma média de 98 por mês. Em todo o 2023, foram 807 apreensões, com média de 67. Em 2024, ninguém foi preso ou apreendido pela GCM por portar o material. No ano passado, houve uma detenção. Segundo a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), a guarda realiza rondas preventivas ao longo do ano para combater a prática.
"Os guardas municipais fazem a abordagem para verificar os tipos de fios usados por pessoas ou grupos que estiverem empinando pipas. Em caso de flagrante, o guarda faz o encaminhamento da pessoa à unidade da Polícia Civil. Os menores de 18 anos são conduzidos ao Juizado da Infância e da Juventude, acompanhados pelos responsáveis", afirma a PBH, em nota.
Edgar Francisco da Silva, o "Gringo", presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), destaca que, mesmo fora desse período, a categoria já está em uma profissão de "alto risco". "Só o risco de sofrer acidente já é um dos maiores do país. Ainda tem o risco de assalto, a poluição e, além disso, toda vez que chegam as férias, ainda temos que nos preocupar com as linhas de pipas", protesta.
Para ele, faltam campanhas de conscientização sobre o problema, além de opções de lazer para crianças e adolescentes. "As campanhas são para as pessoas terem noção do que pode acontecer e evitem fazer isso. Também é preciso arrumar uma outra coisa para essas crianças fazerem, pois estão ali porque não tem outra coisa melhor. Se tivesse mais curso, se tivesse mais presença do poder público dentro das periferias, ocupando nossos jovens, não teria tantos soltando pipa", argumenta o presidente da AMABR.
Vítimas
Dados relativos a acidentes no trânsito provocados por linhas cortantes são fragmentados. O governo de Minas, por exemplo, registrou dois casos no Estado de janeiro a abril; a Prefeitura de BH, um até junho. Neste ano, o Samu da capital socorreu quatro vítimas do uso desses materiais. Não houve óbitos. O Hospital João XXIII, em Belo Horizonte, para onde são levados só os pacientes em estado grave, contabilizou cinco atendimentos até maio. A unidade de saúde não soube informar se houve mortes.
Motociclista há 16 anos, Charles Batista, de 36, conta que "quase morreu" duas vezes somente na última semana. "Se não estivesse usando a antena de proteção, provavelmente eu estaria morto. Ficamos com medo nessa época, pois as autoridades não fazem muita coisa. Infelizmente, abriram muitas lojas dessas linhas chilenas pela cidade, aí ficamos de mãos atadas", lamenta o trabalhador.
"O que posso falar para os motociclistas menos experientes é que eles comprem a anteninha. Sempre falo que dez ou 15 reais não valem mais que a sua vida. Especialmente nesse período de férias, é essencial ter uma antena para se proteger", orienta Charles.
Lesões, sequelas e morte
Os danos causados pela linha chilena ou com cerol podem deixar as vítimas em situação de saúde delicada, como explica Rodrigo Muzzi, gerente médico do Complexo Hospitalar de Urgência e Emergência da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). "O cerol pode cortar o pescoço de motociclistas, com uma lesão às vezes profunda. A vítima pode sofrer lesão na traqueia ou no esôfago, se o corte for mais embaixo, e até em grandes vasos sanguíneos, que é a lesão mais importante, atingindo a jugular e a carótida, o que pode levar à morte."
Muzzi destaca, ainda, o risco de a vítima ficar com sequelas, desde estéticas, com cicatrizes, até mais graves. "Pode ter sequela ventilatória, que deixa o paciente com dificuldade de respirar e o obriga a passar por outros procedimentos depois. Pode ter lesão de inervação vocal e o paciente ficar com a voz bitonal ou rouca", exemplifica.
Multa pode beirar R$ 264 mil
A venda e o uso de linhas cortantes são proibidos em Minas por uma lei estadual, que prevê multa de R$ 5.279. Em caso de reincidência, o valor pode chegar a R$ 263.950. Belo Horizonte também tem uma lei municipal que trata do tema, com punição de R$ 2 mil para quem usar o material e de R$ 4 mil para quem comercializá-lo. Em caso de reincidência, a cobrança será em dobro.
Mas, afinal, qual das leis vale em BH: a estadual ou a municipal? "Quando as questões locais conflitam com as regionais, aplicam-se as leis locais. Neste caso, a municipal. A estadual prevalece nas rodovias estaduais e federais e em municípios sem legislação própria", explica o doutor em ciências jurídicas e professor de direito Gustavo Lopes.
Aumento da multa?
Um projeto de lei em tramitação na Câmara Municipal pretende aumentar a multa em BH. Para quem usa linha cortante, ela passaria a ser de dois a quatro salários mínimos (de R$ 2.824 a R$ 5.648 em valores atuais), enquanto, para quem vende, de quatro a oito (de R$ 5.648 a R$ 11.296). A proposta é da vereadora Loíde Gonçalves (MDB) e foi aprovada em primeiro turno.
Denuncie!
Denúncias sobre o uso ou a venda desses materiais podem ser feitas pelo telefone 181, sem a necessidade de se identificar.