Após dois meses de afastamento, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) autorizou a volta aos trabalhos dos 23 agentes da corporação que foram indiciados pela Polícia Federal (PF), em fevereiro deste ano, pela morte de 26 suspeitos durante operação contra o chamado "novo cangaço", ocorrida em 2021 na cidade de Varginha, no Sul de Minas Gerais. No inquérito, a PF disse ver indícios de "tortura e adulteração de provas" na cena do crime.  

A informação foi confirmada a O TEMPO pela PRF neste sábado (3 de agosto), por nota. Conforme a corporação, os agentes envolvidos na operação foram afastados preventivamente de suas atividades no dia 1º de março deste ano, permanecendo assim até o dia 30 de abril, exatamente dois meses depois. 

"Depois desse período, a Corregedoria-Geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF), após constatar não haver impeditivo legal ou manifestação do Ministério Público Federal (MPF), da Polícia Federal (PF) ou da Justiça Federal para manutenção do afastamento preventivo, autorizou o retorno às atividades operacionais, sem prejuízo para o andamento dos trabalhos correicionais", completou a nota da PRF.

operação foi desencadeada em outubro de 2021, na cidade de Varginha, no Sul de Minas e, na época, foi comemorada pelas corporações como uma ação que teria impedido mais uma explosão de caixas eletrônicos mediante uso de armamento pesado. O documento entregue para apuração do Ministério Público Federal (MPF) pelos investigadores da PF, no entanto, aponta tortura, homicídio e adulterações de provas.

Uma fonte diretamente ligada às investigações disse à reportagem na época do indiciamento que “está mais do que provado que foi uma chacina”. Com o indiciamento, cabe continuidade do caso pelo MPF, órgão que informou em nota que iria reabrir as apurações.

Alteração da cena do crime e tiros forjados

O TEMPO teve acesso ao relatório completo que foi remetido à Justiça, onde os investigadores da PF denunciam uma série de irregularidades na ação das polícias, como sequestro, tortura e execução de dois suspeitos que estariam no caminhão que seria usado na fuga. Além disso, apontam possível alteração da cena do crime e, até mesmo, a existência de tiros forjados com as armas apreendidas visando simular um confronto entre os policiais e os criminosos.

No documento, a instituição federal apontou que, além de entrevistas com os envolvidos na operação, também foram utilizados os relatórios e inquéritos do caso, chegando a afirmar que estes foram "precocemente encerrados" pelas instituições como a PM, Polícia Civil e Ministério Público de Minas Gerais.

A PF pontua ainda que, no total, nos dois sítios que eram usados como esconderijos, os agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e da Polícia Militar (PM) teriam efetuado cerca de 500 disparos de arma de fogo, enquanto as armas dos suspeitos tinham realizado apenas 20 tiros, sendo que nenhum policial foi ferido no suposto tiroteio e todos os criminosos acabaram mortos.

Um laudo técnico emitido pela PF aponta que, logo após os peritos fazerem os levantamentos iniciais, em um dos sítios, já foi possível notar a ausência de sinais de resistência armada dos suspeitos. "Observou-se que os sujeitos que ocupavam o imóvel não estavam preparados para um confronto armado naquele local e que o grande volume de armas e munições que seriam utilizadas na ação de domínio de cidades não estavam disponíveis para pronto emprego no momento da ação policial", destacou.

Ainda no relatório, o que teria ocorrido naquele dia foi uma “ação desacertada”: “Os laudos trazem ainda considerações sobre os projéteis encontrados nos cadáveres, os resultados de confrontações balísticas, cápsulas de munições deflagradas, além de vários outros vestígios que desconstroem a versão apresentada pelos policiais e revelam que, em verdade, o que houve no dia 31 de outubro de 2021 nos Sítios 1 e 2, foi uma ação desacertada da polícia que, surpreendendo suspeitos que preparavam a execução de grave crime violento, acabou por matar a todos", completa a PF no documento.

O armamento apreendido estava acondicionado em sacolas plásticas no interior de um dos veículos. A PF destacou ainda que, na noite anterior à operação, que foi deflagrada às 5h, os suspeitos fizeram uma festa e consumiram grande quantidade de bebidas e drogas, portanto, estariam todos dormindo na hora da entrada dos policiais.

"Um grupo (de policiais) adentra ao imóvel e inicia a visualização dos que ali estavam e que, a essas alturas, corriam recém despertos, desorientados e em desespero sem entender o que ocorria. Todos eram alvejados. A equipe policial progride rumo aos quartos do térreo e ali elimina quem lá estava. Os suspeitos que ganharam a cozinha e já rumavam para porta de acesso à piscina foram baleados. Parte do grupo de policiais inicia subida aos andares superiores. Quem passa pela mira dos policiais é alvejado. Há quem se mantenha nos quartos, há quem se esconda no banheiro, há quem vai para a varanda. Todos são alvejados", detalha a corporação.

Na época do indiciamento, a Polícia Militar de Minas Gerais foi procurada e afirmou que "a investigação do crime militar é de competência EXCLUSIVA da Polícia Judiciária Militar", com base "nos termos do art.125, §4º da Constituição Federal de 1988, combinado com o art.144, §4º da CF/88, e de acordo com o art. 142, inciso III, da Constituição do Estado de Minas Gerais, e art.7⁰, "h",  do Decreto Lei 1002/69.

Já a assessoria de imprensa da Polícia Rodoviária Federal (PRF) informou, por nota, que colabora com os órgãos competentes para o "esclarecimento de todos os aspectos da ocorrência", completando ainda que, em 2023, a Corregedoria-Geral da PRF reabriu procedimento apuratório "frente ao surgimento de novas evidências".

"Na ocorrência, um farto armamento foi apreendido: metralhadora .50, fuzis de grosso calibre, pistolas, dezenas de quilos de explosivos e grande quantidade de carregadores e de munições. A PRF destaca o compromisso com os limites constitucionais e a defesa do estado democrático de direito, incluídos o princípio da presunção de inocência dos agentes, a garantia ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa", concluiu a corporação. 

Relembre a operação

As forças de segurança começaram a investigar o grupo em agosto de 2021. No fim de outubro, após informações indicarem sobre um novo assalto em Varginha, foi montada uma operação conjunta entre a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Na manhã de 31 de outubro, os policiais adentraram duas chácaras em que estavam os suspeitos. Conforme a versão oficial da PMMG, na primeira, foram 18 suspeitos mortos; na segunda, outros oito, totalizando 26. A corporação também divulgou que foi recebida com tiros pelos suspeitos.

A ação chegou a ser comemorada pelas autoridades, à época. A porta-voz da PMMG, capitão Layla Brunnela — atualmente major —, disse que aquela era a maior operação referente ao “Novo Cangaço” no país e que “muitos infratores fariam um roubo a banco, naquele dia ou no dia seguinte, e foram surpreendidos pelo serviço de inteligência da PM integrado com a PRF”.

A PRF informou, por meio de nota, que "a quadrilha possuía um verdadeiro arsenal de guerra sendo apreendidos fuzis, metralhadoras ponto 50, explosivos e coletes à prova de balas, além de vários veículos roubados. Foram arrecadados ainda diversos “miguelitos” (objetos perfurantes feitos com pregos retorcidos usados para furar os pneus das viaturas policiais)".