O banho de folhas e a vela acesa em frente aos orixás como um pedido para iluminar os caminhos. O ritual de Pai Ricardo de Moura, de 54 anos, líder de um centro de Umbanda no bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte, se repete anualmente no período em que antecede o Carnaval. Os gestos são como preces para que o seu bloco, o OriSamba, possa sair às ruas em festa e resguardado da divina proteção. "Um preto sempre é alvo. Um copo que voa, o acerta. Uma bala que dizem estar perdida, também. Isso é uma consequência do racismo, que se manifesta até com quem canta o desejo de ter um lugar no mundo. É só com ajuda do santo mesmo", desabafa.
O ritual às divindades, como prece por proteção, também faz parte da crença que sustenta outros 194 blocos de Belo Horizonte. São grupos que se autodeclaram como afro-brasileiros e que representam 34% dos 568 que se cadastraram para a folia deste ano. Ou seja, três em cada dez cortejos previstos para saírem às ruas e avenidas da cidade. "Apesar de o Carnaval brasileiro ter suas raízes na África e um número expressivo de blocos afros, a violência com o povo negro também se manifesta na folia. Em BH, por exemplo, quando houve a retomada da festa, não se via negros como protagonistas nos trios e nas baterias", relata Nayara Garófalo, de 39, cofundadora do bloco afro Angola Janga.
A desigualdade denunciada por Nayara não se limita à capital mineira. A ausência do protagonismo negro nos blocos carnavalescos foi, inclusive, o que motivou o surgimento do primeiro bloco afro do país, o Ilê Aiyê. O cortejo, criado em 1974, na Bahia, saiu às ruas com o objetivo de reunir a população negra que se encontrava distante dos cortejos.
À época, a líder religiosa Hilda Dias dos Santos, conhecida como Mãe Hilda Jitolu, fundadora do bloco, se incomodou ao perceber que negros estavam na festa apenas para trabalho, como na venda de bebidas e segurando as cordas no entorno dos trios. A insatisfação se manifestou logo no primeiro desfile do Ilê Aiyê, quando, conforme relatos históricos, o bloco tomou as ruas da capital soteropolitana exaltando a ancestralidade e a identidade do povo negro.
"Infelizmente, o racismo é um problema de décadas. E, no Carnaval, quando falamos de cultura afrodescendente, temos uma outra questão que é o racismo religioso. Isso tem se tornado cada vez mais comum em nosso país, afetando, principalmente, as religiões de matrizes africanas, como a Umbanda e o Candomblé, que estão na base da folia", explica o carnavalesco e pesquisador Agnaldo Müller.
Em 2024, conforme o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Brasil registrou um aumento de 81% nos casos de violações motivadas por intolerância religiosa. Foram 3.853 registros, número superior aos 2.128 de 2023. Em Minas Gerais, conforme a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp-MG), 151 casos de intolerância religiosa foram registrados no ano passado.
Para o pesquisador Agnaldo Müller, essa violência, que também se perpetua nos blocos carnavalescos, decorre da ausência de políticas públicas efetivas na proteção dos grupos formadores de cultura. "Um bloco afro precisa ter proteção e reconhecimento do Estado durante todo o ano. É preciso o entendimento de que ele não é apenas um bloco. É algo que tem um território, uma comunidade, uma ancestralidade. Ele é, essencialmente, um movimento que preserva e produz cultura. Por isso a necessidade de proteção, e não apenas durante o Carnaval", aponta.
Medidas públicas
A Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Belotur, empresa de turismo da capital, afirma que está comprometida com o desenvolvimento dos blocos carnavalescos. Uma das medidas adotadas pela pasta, justificada como forma de apoio a esses grupos, é o Auxílio Financeiro para o Carnaval de 2025, cujo aporte inicial foi de R$ 1,762 milhão. "O objetivo é proporcionar aos blocos a oportunidade de melhorar a estrutura de ensaios, aprimorar a qualidade do som e a segurança oferecida aos foliões que acompanham o cortejo", explica.
Ao todo, 101 blocos foram contemplados com os recursos, que são divididos em três categorias. Deste total, 35 dos beneficiados são cortejos que se reconhecem como afro-brasileiros. "A Belotur pergunta na ficha de inscrição se o grupo se identifica como um Bloco Afro e se valorizou a representatividade da cultura afro-brasileira durante os desfiles anteriores. Com base nessa informação, os Blocos Afros da cidade recebem uma pontuação diferenciada", acrescenta.
O produtor cultural Gabriel de Moura, de 27 anos, foi o responsável por inscrever o OriSamba no edital do Auxílio Financeiro. O grupo em que ele é um dos fundadores foi contemplado na categoria A, com recurso determinado de R$ 22,8 mil. "É algo muito importante, mas, ao mesmo tempo, desafiador para alguns blocos. Muitos não possuem quem possa fazer essa parte burocrática exigida. Falta ao poder público entender a realidade desses blocos afros e as comunidades onde estão. Não existe essa separação entre um e outro, são um só. Por isso a necessidade de um cuidado para além da folia", alerta.
Além da pontuação diferenciada na disputa pelo auxílio financeiro, a Prefeitura de Belo Horizonte afirma que busca preservar e promover os blocos afros com as apresentações do Kandandu — um encontro de blocos com raízes africanas que abre o Carnaval da capital. A manifestação artística foi idealizada pela Associação dos Blocos Afro de Minas Gerais (Abafro) em 2015. Desde 2017, o ato começou a ser realizado em parceria com a Belotur.
"Essa é uma reconstrução, uma retomada do nosso espaço. Só que jamais podemos esquecer como foi para chegar nessa conquista. Isso só se deu com muitos tambores silenciados, de muitos terreiros violados. Tivemos que vencer, ou melhor, sobreviver ao racismo para chegar nesse lugar que é e deveria ser nosso por direito", afirma Pai Ricardo.
Avanço do Carnaval impõe debate sobre embranquecimento dos blocos
Além do número recorde de 568 blocos, Belo Horizonte espera reunir 6 milhões de foliões neste ano — a maior quantidade em toda a história do Carnaval na capital mineira. Em meio ao avanço da festa, uma batalha silenciosa se desenrola, travada entre a tradição popular e a apropriação elitista. A mercantilização da folia se tornou um dilema para os blocos, que temem pela descaracterização da autenticidade da celebração.
"Isso acontece, muitas vezes, quando retiram ritmos de candomblé, ou de outras religiões de matrizes africanas, e falam que é a versão de determinado artista, muitas vezes branco. O apagamento dessa informação é uma violência", denuncia Nayara Garófalo. Uma realidade que, segundo Geo Ozada, cofundador do Baianas Ozadas, um dos blocos mais populares da capital, se dá pelo racismo estrutural. "Se a gente tem uma elite branca privilegiada e uma grande maioria da população negra e parda sem as mesmas oportunidades, esse problema de apropriação vai persistir", acrescenta.
O carnavalesco e pesquisador Agnaldo Müller afirma, porém, que esse é um problema social que persiste desde o passado. "Depois que a escravidão foi abolida, a elite perdeu o controle sobre os negros, que tinham o Carnaval como uma oportunidade de festa, de manifestar. Só que, com a alegria dos negros, isso despertou curiosidade nas elites, que começou a querer participar também. Então esse era o único momento em que os brancos se reuniam com esse grupo, e, para isso, se caracterizavam, como eles", conta.
Essa tentativa de "apagamento", como definido por Nayara Garófalo, se dá, na atualidade, com a mercantilização da folia. Segundo a cofundadora do bloco afro Angola Janga, em alguns casos, os patrocinadores fazem exigências que ignoram a essência dos cortejos. "O desenvolvimento é algo importante. A gente precisa do apoio das empresas, das marcas interessadas em bancar a folia. Só que, no nosso caso, colocamos um limite de até onde podemos negociar. Os nossos valores e princípios precisam ser mantidos", afirma.
Moleque do samba no buraco quente
Brincar o carnaval no morro desnudo e sem vaidade. Esse se tornou o mantra do produtor cultural Gabriel de Moura, de 27 anos, desde a sua adolescência. Aos 17 anos, criou o OriSamba — bloco carnavalesco da Vila Senhor dos Passos, uma comunidade periférica do bairro Lagoinha, na região Noroeste da capital. O cortejo era o desejo do menino, que procurava uma forma de preservar a crença em seus orixás, além de poder reunir "a comunidade", outrora marginalizada.
"O bloco nasce do entendimento da nossa ancestralidade, que tem muito desses costumes de celebrar, fazer música, estar junto. Coisas que sempre acontecem nas festas de Iemanjá, Oxóssi e outras divindades. Então, com o OriSamba, o que fizemos foi dar nome e sentido para isso. É preservar, fazer a transmissão do saber e promover a linha de sucessão", explica Gabriel.
A Vila, onde a fé e o samba se encontram, foi uma das primeiras da capital mineira. O local serviu de abrigo para as famílias daqueles que trabalhavam na construção da nova metrópole, ainda na primeira década do século passado. Às margens do centro, a Vila Senhor dos Passos tem, atualmente, mais de 3 mil moradores, conforme dados da Prefeitura de Belo Horizonte. "Famílias que foram 'jogadas' aqui quando a cidade começou a ser construída, mas que estabeleceram um modo de vida, um comportamento afro. Por isso, quando nosso bloco sai às ruas, sempre cantamos a nossa história, nossa ancestralidade", destaca.
Uma das canções remete a localização da comunidade e denuncia o olhar preconceituoso. "Entre Angola e Senegal, existe um continente. Uns chamam de Lagoinha, outros de buraco quente", diz a letra. A composição cita os viadutos Angola e Senegal, localizados na avenida Antônio Carlos, que margeia a Vila. O trecho também cita o termo buraco quente, expressão que, segundo os moradores mais antigos, se referia às brigas entre mulheres que residiam no local, mas que, ao longo dos anos, se tornou sinônimo de lugar perigoso.
"São muitos os episódios de violência que enfrentamos. E, no Carnaval, é isso o que nós cantamos, até como forma de denunciar. Só que mesmo diante da falta de apoio e segurança, nos sobra alegria. Pelo menos durante a festa", finaliza.