Um dia histórico e de vitória para a resistência, a ancestralidade e para a cultura de Minas Gerais, estado que concentra mais de 80% dos Congados, Marujadas, Reinados e outros grupos tradicionais da cultura afro-brasileira. Nesta terça-feira (17 de junho), os “Saberes do Rosário - Reinados, Congados e Congadas” se tornaram um Patrimônio Cultural do Brasil, título aprovado durante a 109ª Reunião do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 

Em entrevista a O TEMPO, a superintendente substituta do Iphan-MG, Tainah Leite, conta que o processo de reconhecimento destes grupos teve início ainda em 2008, após um pedido formalizado por Congados da região do Triângulo Mineiro. A partir de então, teve início uma série de pesquisas que conseguiram mapear centenas de ocorrências da expressão do Rosário, principalmente em Minas, mas, também, nos estados de Goiás e São Paulo. 

“Conseguimos identificar essas manifestações culturais em 20 municípios de Goiás, e em 31 municípios de São Paulo. Já em Minas, temos mais de 300 municípios com registro destes grupos tradicionais, com mais de 700 festas e 1.174 irmandades do Rosário. De fato, em Minas, é bem expressivo. Mas a proposta é que esse bem cultural seja tratado com uma abrangência regional”, detalhou. 

Para se ter ideia, das 383 cidades com grupos tradicionais em todo o Brasil, 332 são mineiras, o que representa 86% do total. “Esse bem cultural, o Iphan está tratando pelo nome de ‘Saberes do Rosário - Reinados, Congados e Congadas’, pois, como essa terminologia varia muito, dependendo da região, houve esse entendimento que este seria um nome bastante agregador”, completou Tainah.

Mapa mostra localização dos grupos identificados pelo Iphan l Reprodução/Dossiê do Iphan

 

A notícia foi comemorada por integrantes dos grupos tradicionais. “Os verdadeiros protagonistas dessa conquista são os nossos antepassados. Isso é resultado da resistência, da luta, dos nossos ancestrais que sofreram na pele para preservar essas manifestações. Estes títulos nos dão condições de seguir na luta por igualdade social e racial, nos dá condições para continuar na luta pela preservação das nossas manifestações culturais”, celebra Jorge Antônio dos Santos, diretor social da Comunidade dos Arturos, localizada em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. 

A alegria pelo reconhecimento é compartilhada por Kelma Gizele, capitã e rainha da alvorada da Guarda São Jorge de Nossa Senhora do Rosário, criada por seus avós na década de 1930, na rua Tamboril, no bairro Concórdia, na região Nordeste de Belo Horizonte, considerado um dos grupos mais antigos da capital mineira. 

“Esse título remete a cada dia de luta enfrentada pelos nossos antepassados, que nunca desistiram de sua fé, adoração e devoção. Por mais que fossem pisoteados, a fé prevaleceu, a conta do Rosário de Maria não se desfez. Ao longo dos séculos e décadas, tudo o que um dia foi plantado não se perdeu. O povo negro do Rosário é gente de fibra, madeira forte, boa, que enverga mas não quebra, não dá caruncho. Temos nossos valores que correm por nossas veias e que ninguém tira de nós”, disse, com firmeza, a capitã. 

Registro histórico da Guarda São Jorge de Nossa Senhora do Rosário, criada na década de 30 em BH l ARQUIVO PESSOAL / DIVULGAÇÃO

O que muda? 

Pesquisadora nos campos das ciências sociais, arqueologia e antropologia, Jaqueline Gomes Santos atuou com vários grupos de Congado e Reinado em seus trabalhos. Ela conta que a principal dificuldade enfrentada por eles, em sua maioria pessoas mais idosas, é justamente a insegurança na transmissão dos conhecimentos associados aos grupos e sua continuidade pelas próximas gerações.

“E isso esbarra também em dificuldades financeiras associadas. Pois, para acontecer, o Congado depende dessa mobilização comunitária, da doação. Muita gente se envolve pela questão das promessas, por graças alcançadas com Nossa Senhora do Rosário. A pessoa pede alguma coisa e promete servir o café da manhã para a Guarda, no dia da festa, por 7 anos, por exemplo. Com isso, esses grupos compartilham dessas dificuldades de mobilidade, de transporte, e, às vezes, não conseguem um apoio”, destaca. 

Por isso, o diretor social da Comunidade dos Arturos, Jorge Antônio dos Santos, acredita que o reconhecimento nacional trará maiores condições para que eles possam concorrer a políticas públicas de fomento à cultura. “A gente ainda está aquém da realidade que deveria ser, de valorização e preservação das manifestações afro. Mas, a forma legal que os órgãos públicos têm para poder patrocinar, apoiar a preservação dessas manifestações, é através destas políticas públicas que foram criadas, como vários editais que são lançados”, pondera. 

Conforme o secretário de cultura Leônidas Oliveira, municípios que comprovam ter apontado recursos para estas manifestações culturais, recebem valores todos os anos de apoio institucional. “Este mês estou pagando R$ 40 milhões da Lei Aldir Blanc e vou abrir um edital de R$ 22,5 milhões do Fundo Estadual de Cultura (FEC). E, por ser patrimônio histórico, a pontuação destes grupos nessas concorrências sobe bastante. Além disso, agora, no mês de julho, vamos abrir um edital do Prêmio Rainha, para mulheres negras que estão na Congada”, detalha. 

Questionada sobre onde a população encontra a programação com as festividades dos mais de mil grupos de Congado e Reinado de Minas Gerais, a superintendente substituta do Iphan no Estado, Tainah Leite, garante que este deve ser um dos próximos passos após o reconhecimento. “É importante que seja feito nesse momento pós-registro, na continuidade das ações de apoio e fomento”, garante. 

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Origem veio da segregação, que ainda continua

No início do século XVIII, quando ocorrem os primeiros registros históricos destas manifestações culturais, a população negra era impedida de frequentar as mesmas igrejas que a população branca, segundo conta a pesquisadora Jaqueline Gomes Santos. “Os Congados são fundados a partir das irmandades dos homens pretos, que tinham os seus santos de devoção e construíram suas igrejas. Essas pessoas se organizavam em torno da devoção, mas, também, de aspectos simbólicos que remetem a símbolos que eram dos territórios originais dessas populações, na África”, detalha. 

“Essas festas começaram a ser realizadas e tinham muito dessa questão da ocupação do espaço público em que você tinha essa encenação de uma hierarquia, que, muitas vezes, podiam até ter uma relação com esses territórios originais. Então, até hoje, você tem os reis, rainhas, príncipes e princesas relacionados aos santos. São papéis que vão para além da esfera religiosa, já que essas pessoas (congadeiros) têm uma liderança na comunidade. E estes papéis, muitas vezes, são genealógicos mesmo, passa de mãe para filha, ou de pai para filho”, completa a cientista social. 

Entretanto, a segregação e o impedimento aos grupos de acessarem as igrejas católicas continuou até muito pouco tempo atrás. Para se ter ideia, há apenas 2 anos foi revogada pelo arcebispo metropolitano Dom Walmor Oliveira uma norma de 1923, que proibia os festejos do Reinado nos templos da Igreja Católica em Minas. A medida foi adotada após um padre de Tiradentes, na região do Campo das Vertentes, ser acusado de racismo ao impedir um grupo de Congado da cidade de se manifestar no interior da igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.

“A gente já avançou em vários órgãos públicos e na sociedade. Mas, em meio à religiosidade, ainda estamos longe de alcançar o reconhecimento que merecemos. A gente precisa ter o respeito das religiões evangélicas e o verdadeiro reconhecimento dos católicos, onde hoje somos aceitos com imposição, pois, para isso, temos que abrir mão das nossas verdadeiras religiões, que são as de matriz africana”, reclama Jorge, da Comunidade dos Arturos.

Devoção à Nossa Senhora do Rosário

Entre os diversos grupos de Reinado espalhados pelo país, a devoção à Nossa Senhora do Rosário é o principal ponto que liga todos eles. De acordo com o Jorge Antônio dos Santos, da Comunidades dos Arturos, a origem dessa fé, conforme os relatos dos “nossos mais velhos”, remete aos tempos da escravidão, quando os negros começaram a ser batizados como católicos e, assim adotaram o sincretismo religioso como forma de manter o culto às entidades de matriz africana. 

“O que para muitos é lenda, para nós, reinadeiros, é história! O que se conta é que uma imagem de Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar. Os padres retiraram a imagem, com as manifestações europeias, mas a imagem sempre retornava para a água. Foi assim até o dia em que foi permitido pelos senhores de escravos, e os negros, com os seus tambores africanos, conseguiram retirar essa imagem do mar e ela ficou em uma das igrejas que foram construídas em devoção a Nossa Senhora do Rosário. A partir daí, foi aumentando a resistência dos escravos diante de tanto sofrimento, a organização em busca da liberdade, a formação dos quilombos e o fortalecimento do povo negro”, lembra.

Santos destaca ainda que essa história é regada de sentimentos de um povo com uma história sofrida e, por isso, o que eles fazem é celebrar e manter viva a ancestralidade que vem desde a África. “Toda essa manifestação, a maneira de realização dela, utiliza elementos da natureza, que, eu acredito, que o mundo precisa aprender a respeitar. Tudo o que Deus criou neste mundo é para a sustentabilidade da sociedade, que, infelizmente, utiliza deles, mas não preserva. Por isso, acho que, além de aprender a respeitar os seres humanos, precisamos respeitar e preservar a natureza, que tem uma importância muito grande para nós, afrodescendentes, pois nos dá vida e saúde”, conclui. 

Minas é o Estado com mais bens imateriais no Brasil

Com o reconhecimento dos Congados como Patrimônio Nacional, Minas Gerais se tornou, segundo o secretário de estado de Cultura e Turismo, Leônidas Oliveira, o Estado com maior número de bens tombados como patrimônio do Brasil. 

“O primeiro bem imaterial do país foi o queijo. Hoje, Minas passa a ter, disparado, o maior número de proteção material e imaterial, com 62% do patrimônio histórico do Brasil”, conta orgulhoso.