O nome Yasmim significa “flor de jasmim” e remete à beleza e à doçura. No Oriente Médio, há a crença de que o deus do amor usava essas flores em suas flechas para espalhar afeto. Ainda é assim que Eliane Brandão, de 56 anos, vê a filha, meses após ela ter tirado a própria vida em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. “Yasmim, quando criança, era tão meiga, carinhosa, sorridente”, recorda. Mas a trajetória dela acabou marcada por desafios pesados demais para uma menina que só queria desabrochar.
Aos 12 anos, Yasmim passou a se cortar, e Eliane foi chamada à escola após vir à tona um caso de abuso sexual. O trauma nunca deixou a jovem, desembocando em ansiedade e depressão. Aos 17, ela sofreu um acidente grave, e as sequelas a deixaram com vergonha do próprio corpo. Yasmim se afastou das amigas e deixou de frequentar a escola. Um ano depois, sem perceber os afetos que ela, como uma “flor de jasmim”, naturalmente irradiava, a adolescente se despediu. “Ela me dizia: ‘Mãe, não quero mais viver, não sou feliz aqui’. Era peso demais para uma menina carregar”.
Eliane diz que perdeu o controle sobre a fisioterapia e o acompanhamento psicológico da filha durante uma relação abusiva da menina. FOTO: Fred Magno / O TEMPO
O fim precoce da história da jovem, mesmo durante tratamentos psicológico e psiquiátrico e apoio incondicional da família, entrou para uma estatística triste em curva ascendente. Dados do Painel Epidemiológico da Violência, do governo de Minas, mostram que, de 2020 até a primeira semana de setembro deste ano, 560 estudantes do ensino fundamental ao superior tiraram a própria vida. Desses, 266 (48%) tinham entre 15 e 19 anos. Outros 66 (12%) eram alunos de 10 a 14 anos. Ou seja, 60% dos casos envolvem meninos e meninas de 10 a 19 anos.
Não é possível mapear uma única causa para qualquer caso de suicídio. Por isso, é dito que o autoextermínio é uma situação multifatorial e muito associada a um adoecimento mental prévio. No caso de crianças e adolescentes, parte das dores explodem no contexto escolar, no qual passam boa parte dos seus dias. Dores que podem ser agravadas por situações de violências em sala de aula, como vai ser debatido no segundo dia da série de reportagens “Saúde mental à prova”.
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“A gente observa nas vítimas de bullying e cyberbullying maior sofrimento psicológico, uma diminuição da satisfação de vida, desesperança, sentimento de desamparo e de impotência. Nos grupos, tanto de vítimas quanto de agressores, essa taxa de tentativa de suicídio é duas vezes mais alta”, afirma a coordenadora do curso de psicologia da Afya Sete Lagoas, Sabrina Magalhães.
A especialista lembra que a explicação não pode ser simplista: “O bullying sozinho não leva ao suicídio. Ele exacerba uma dificuldade com que o jovem já está lidando. Existe um sofrimento anterior e, às vezes, é a gota d’água, um trauma adicional que faz o jovem não encontrar solução, não encontrar esperança”, explica.
Ânimos aflorados
“A sociedade está mais violenta, com divergências partidárias. Essa divisão acirra os ânimos na escola, com piora no convívio e mais isolamento dos jovens.”
Deborah Carvalho, pesquisadora e professora da UFMG
Humilhação gera autolesões
Seis em cada dez estudantes de 13 a 17 anos que recorreram a autolesões afirmam ser vítimas de bullying, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense). Um sinal de que a forma como as crianças e adolescentes se sentem perante seus pares pode indicar sofrimento mental relevante.
O levantamento considerou autolesões situações como cortes superficiais, queimaduras, arranhões, mordidas, bater certas partes do corpo contra a parede ou objetos, contundir ou fraturar ossos, interferir no processo de cicatrização de ferimentos, com consequente aumento, arranhar e escavar a própria face, acompanhado de sangramento, infectar-se, inserir objetos em cavidades do corpo, puxar cabelos, esfregar pedaços de vidros na pele, entre outras.
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A mesma pesquisa mostrou que as estudantes mulheres têm apresentado quadros de maior sofrimento mental do que os homens: 29,6% das meninas declararam sentir que a vida não vale a pena ser vivida. Entre os meninos, o percentual cai para 13%. Ao mesmo tempo, 67% das estudantes mulheres que recorreram à autolesão sofreram bullying antes. Entre os meninos, cai para 62%. Não por acaso, 75,5% dos meninos relataram estar muito satisfeitos com o próprio corpo. Entre as mulheres, cai para 57,8%.
“Machismo, homofobia, racismo são traços de nossa herança histórica, e isso é repetido nas escolas. Por isso, é maior a violência contra crianças vulneráveis, negras e meninas”, explica a professora da UFMG Deborah Carvalho Malta, coordenadora do estudo “Cyberbullying entre escolares brasileiros: dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar”, 2019.
Álcool piora a situação
Mesmo o álcool sendo proibido para menores, 63,3% dos estudantes de 13 a 17 anos no Brasil já o consumiram, segundo o IBGE. Um risco para a saúde mental.
“O álcool é um depressor do sistema nervoso central. A pessoa fica deprimida e com maior senso de desesperança. É comum a busca pela substância para apagar a dor, e ela faz o contrário”, diz a coordenadora do curso de psicologia da Afya, Sabrina Magalhães.
Prevenção
Estado. A SEE-MG disse que tem programas que estabelecem protocolos para intervenções diante de violações de direitos, incluindo bullying e cyberbullyng. Há acompanhamento de psicólogos e campanhas.
BH. A Secretaria Municipal adota protocolos de encaminhamento e apoio pedagógico aos alunos, planos de convivência escolar e práticas para promover uma cultura de paz nas escolas.