Rompimento da barragem

Brumadinho: IML ainda enfrenta desafios para identificar vítimas da tragédia

Médico-legista esmiuça o trabalho pericial executado pelo Instituto Médico-Legal de Belo Horizonte, que ainda atua na análise de restos mortais das vítimas do rompimento da barragem

Por Manuel Marçal, Marcos Carreiro e Renato Crozatti
Publicado em 25 de janeiro de 2023 | 03:00
 
 
 
normal

Quando os primeiros rumores sobre o rompimento  de uma barragem da mineradora Vale chegaram ao Instituto Médico Legal (IML) de Belo Horizonte, em 25 de janeiro de 2019, o médico-legista e então diretor do órgão, José Roberto de Rezende Costa, se prontificou a confirmar a veracidade da informação. Assim que entendeu tratar-se da barragem I, da mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, e compreendeu a dimensão da tragédia, com potencial para fazer centenas de vítimas, ele concluiu que aquele era o início de um longo e árduo trabalho pericial.

O mapa de uma tragédia: Leia aqui a matéria completa

Já no início daquela tarde, Rezende Costa convocou todos os servidores do IML  – tanto os que estavam de plantão quanto aqueles de folga ou licenciados. Naquele momento, foram colocados em prática todos os planos de ação e de contingência, até então engavetados pelo instituto, já que não havia qualquer expectativa de que, um dia, fosse preciso lançar mão de todos eles. “Mas chegou o dia”, relembra, quase quatro anos depois, em conversa com a reportagem.

“Para minha surpresa, todas as pessoas que a gente convocou se apresentaram imediatamente, e não só as que estavam fora do seu horário de trabalho, mas também as que estavam de licença médica por alguma razão, que estavam de férias, inclusive servidores aposentados E realmente foi necessário”, afirma, emocionado.

A noção de que o trabalho seria “longo e árduo”, em suas palavras, se deu por saber que logo abaixo da barragem rompida, havia um refeitório com centenas de funcionários da Vale S.A. e trabalhadores terceirizados. Fora isso, fazendas, sítios, hotéis, pousadas, pensões e residências estavam no caminho da avalanche de rejeitos.

De fato, a lama fez várias vítimas para além do terreno da mineradora. Entre os locais atingidos estava a pousada Nova Estância, onde se hospedava Maria de Lurdes da Costa Bueno, de 59 anos, uma das três vítimas que continuam desaparecidas. 

“Nos primeiros meses, eu chegava ao IML, às 5h, 6h da manhã e saía de lá meia-noite, 1h, 2 h da manhã seguinte”, conta Rezende Costa. 

Fragmentação de corpos desafiou a perícia

Além da quantidade de vítimas – foram 270 mortos na tragédia –, os peritos do IML de Belo Horizonte precisaram lidar com outras camadas de complexidade na identificação das pessoas. Um dos maiores desafios, segundo o ex-diretor do instituto, foi a fragmentação dos corpos. “A gente teve que lidar com todo tipo de espécime de amostras, desde cadáveres inteiros a fragmentos ou apenas partes. Às vezes, um órgão, um pequeno segmento, uma pequena parte de um membro, um osso ou partes de osso. Então, vimos que o trabalho seria extremamente mais complexo do que a gente poderia imaginar”, explica o médico-legista.

Rezende Costa revela que, em vários casos, fragmentos de uma mesma vítima foram recebidos no IML em ocasiões diferentes. “Vou dar um exemplo fictício: recebemos segmentos em que tínhamos o tórax e o crânio, e conseguíamos, através disso, fazer a identificação (da vítima). Meses depois, apareceu um membro inferior e a gente conseguiu fazer um link entre aquele membro e os segmentos que já haviam sido identificados. E isso aconteceu repetidas vezes para um único indivíduo. Foi muito frequente”, explica. 

Restos mortais ainda são analisados pelo IML

Cada corpo ou segmento corporal é chamado de ‘caso’ pelos peritos do IML. Até o último dia 17 de janeiro, o instituto já havia catalogado 1.004 casos. Desse total, 968 já foram finalizados, 113 considerados inconclusivos (por não ser possível extrair DNA) e 36 ainda permaneciam em análise. Dos 270 mortos,  267 já foram devidamente identificados. “Isso é muito importante, pois finaliza, ao menos em parte, o grande sofrimento das famílias e entes queridos”, ressalta o médico legista.

Rezende Costa explica, porém, que ainda há possibilidade de identificar as três vítimas não localizadas, uma vez que o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais ainda mantém a operação de buscas no local da tragédia. Exemplo disso é que, até a data da entrevista com o médico-legista, em 25 de novembro de 2022, 1.003 casos haviam sido catalogados pelo IML. No último dia 17 de janeiro, porém, outro caso já havia chegado ao instituto, que continua analisando os casos sem conclusão. Em novembro, eram 42 os casos em análise de DNA; em janeiro, esse número caiu para 36.

A última vítima a ser identificada foi Cristiane Antunes Campos. O reconhecimento ocorreu por meio de exame de DNA. Supervisora de mina, ela era natural de Belo Horizonte e foi a 267ª a ser localizada. Atualmente, os bombeiros ainda procuram por Maria de Lurdes da Costa Bueno, Nathalia de Oliveira Porto Araújo e Tiago Tadeu Mendes da Silva.

Identificação dos corpos é minuciosa 

O ex-diretor do IML explica que, devido à gravidade e ao impacto social da tragédia, mesmo aqueles corpos e segmentos que chegaram ao instituto portando algum documento foram cadastrados como “desconhecidos” e passaram por um processo de identificação médico-legal. Três métodos foram usados para identificação das vítimas: análise de impressões digitais, da arcada dentária ou do DNA. 

Rezende Costa relata que muitas pessoas foram identificadas pelos dois primeiros métodos, mas esclarece que, nos casos em que não foi possível, e antes de partir para o DNA, foi realizada tentativa de “identificação secundária”, chamada de antropologia forense. “É a técnica na qual a gente consegue comparar várias informações acerca de um cadáver a partir das informações que a gente recebe dos supostos desaparecidos. Dados que a gente recebe dos familiares são comparados com cada um dos elementos dos corpos ou fragmentos que a gente recebe.”

O médico-legista descreve que, neste método, há a procura de sinais particulares encontrados nos restos mortais, como tatuagens, deformidades ósseas, cicatrizes, implantes, pinos ou próteses, órteses ósseas etc. “Esses dados são muito importantes e ajudaram, em vários casos, na identificação”, diz. 

Ele exemplifica: “suponhamos que a família relate que o seu ente querido foi submetido a uma cirurgia devido a uma fratura de cotovelo e que foi colocado um pino lá. Se eu achar um osso de cotovelo com um pino, mesmo que a pessoa já tenha sido identificada, através daquele pino e daquele osso, eu posso chegar à conclusão de que se trata daquele mesmo indivíduo que está na lista de desaparecidos.”

Entre os materiais recolhidos de familiares estavam, por exemplo, imagens de raios-x. “A conformação dos seios da face é individual. Então, com um raio-x simples que a pessoa fez em vida, a gente poderia comparar com o raio-x de um crânio que fizemos após a morte para ver se existem pontos de coincidência que nos levem a concluir que se trata da mesma pessoa”, explica.

Para auxiliar na identificação das vítimas em Brumadinho, a Polícia Civil recolheu fotografias da pessoa sorrindo, cópias de laudos de raio-x, tomografia, ressonâncias e fotografias de tatuagens. De posse desse conjunto de informações, o IML fez uma planilha e usou um software próprio para fazer a comparação entre os dados recebidos e os corpos e segmentos corporais que chegavam ao instituto. 

Apesar de todo o esforço, porém, a maior parte das identificações só ocorreu após análise de DNA. Nesse caso, o DNA do corpo ou fragmento é comparado com material genético de familiares das vítimas. 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!