Desencarcera!

Com 3 mil denúncias, projeto quer apuração de irregularidades em presídios de MG

Plataforma desenvolvida em parceria com a UFMG coletou 2.898 denúncias de violações em presídios e em centros socioeducativos de Minas

Por Rayllan Oliveira
Publicado em 02 de maio de 2023 | 11:35
 
 
 
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Uma plataforma desenvolvida em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) reúne dados para apresentar às autoridades públicas um relatório sobre as irregularidades e os casos de violência que ocorrem nas unidades prisionais e nos centros socioeducativos do Estado. O levantamento, feito pela "Desencarcera!", deverá ser entregue ao poder público ainda neste mês de maio. A intenção, segundo os membros do projeto, que já coletaram quase 3 mil denúncias, é de que o documento possa instigar as autoridades a investigar as diversas denúncias feitas, em maioria, por familiares da população encarcerada.

"A nossa intenção não é fiscalizar, apurar a veracidade das denúncias, mas fazer com que o poder público não ignore essas reclamações", explica a professora do Departamento de Psicologia da UFMG e coordenadora do LabTrab, Carolyne Reis Barros. Para ela, que faz parte do projeto, o objetivo é construir conhecimento sobre a situação nestes lugares para compartilhar com a sociedade e, assim, mudar alguns dos estereótipos. "A gente precisa rever essa forma que lidamos com o conflito e as questões punitivas. Precisamos entender a partir do depoimento de quem é realmente afetado pelo cárcere, sejam os familiares, os trabalhadores ou os sobreviventes. É repensar o cárcere, que hoje é estruturado a partir da violência e da violação de direitos", completa.

Até o começo deste mês, a plataforma, criada em 2018, já reuniu 2.898 denúncias, sendo de 236 unidades prisionais e 38 unidades socioeducativas. O presídio Professor Jacy de Assis, em Uberlândia, na região do Triângulo Mineiro, é o que possui o maior número de reclamações. Ele é seguido pelo presídio Antônio Dutra Ladeira, em Ribeirão das Neves, e o São Joaquim de Bicas II, na cidade com o mesmo nome. Ambos estão localizados na região metropolitana de Belo Horizonte. O centro socioeducativo Santa Terezinha, na capital, lidera entre as unidades deste segmento. O centro Socioeducativo de Sete Lagoas, na região Central, é o segundo.

"Nós já temos uma parceria com a Defensoria Pública. Sabemos que alguns defensores utilizam as denúncias da plataforma para construir ações civis públicas. Mas é importante ter o envolvimento de outros órgãos, como a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, o Ministério Público, e as instituições de segurança pública também", reforça Carolyne Reis Barros. 

O projeto é desenvolvido pelo Instituto DH, em parceria com o Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos (LabTrab) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade de MG (GAFPPL). A plataforma foi lançada em 2018.

O perfil das denúncias

"O que mais será proibido? Fico me perguntando se o pior terá que acontecer pra vocês façam uma sindicância, uma diligência, para averiguar o que acontece. Terão que morrer presos? Eles já estão presos, condenados e pagando. Não tem a necessidade de sofrer todas essas opressões e agressões gratuitas, e as famílias serem coagidas e maltratadas por causa de que estão presos". A denúncia sobre tortura contra o preso foi feita de forma anônima na plataforma sobre a situação no presídio Professor Jacy de Assis, em Uberlândia, na região do Triângulo Mineiro.

Ela é uma das 2898 reclamações coletadas pela plataforma. Além de denúncias sobre tortura contra o preso, a "Desencarcera!" conta com reclamações de violação de direito de familiares, violação de direitos de presos e outras denúncias. "Venha falar sobre as chamadas de vídeos que estão acontecendo, que estão sempre caindo e não são retomadas. Com dois agentes e assistente social em cima, mas podem falar o que realmente está acontecendo lá dentro", relata uma denúncia sobre violação de direitos de presos, também feita de forma anônima, na APAC de Patos de Minas, na região Central do Estado.

Para a professora do Departamento de Psicologia da UFMG e coordenadora do LabTrab, Carolyne Reis Barros, as denúncias apontam que as irregularidades não são casos isolados, e revelam um problema estrutural. "As denúncias de tortura, por exemplo, são recorrentes. Durante a pandemia tivemos algumas mais específicas, como impedimento das visitas, transferências sem motivos. Só que geralmente recebemos reclamações sobre a qualidade da alimentação,  tratamento a que os familiares são submetidos, com processo de revista vexatório, impedimento de trabalhos técnicos, como os de assistência à saúde, entre outros", detalha.

Famílias em pânico e denúncia de omissão do Estado

Para Maria Tereza dos Santos, que é coordenadora e mobilizadora social do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade (GAFPPL-MG), a situação dos presídios e dos centros socioeducacionais de Minas Gerais é grave, e a plataforma é uma importante ferramenta para cobrar investigação das irregularidades e dar segurança para quem denuncia.

"Hoje, a pessoa que cobra é punida. Os familiares vivem em estado de pânico. Isso porque quando você faz uma denúncia, eles identificam quem é o preso e, geralmente, ele é transferido para uma cidade muito distante da de origem. Isso dificulta a visitação, já que essas famílias não possuem condições financeiras", denuncia Maria Tereza.

Ainda segundo a coordenadora do GAFPPL-MG, que atua junto a familiares e amigos de encarcerados, os episódios de violência são recorrentes dentro das unidades prisionais. Ela aponta que o poder público ignora os repetidos casos e não apura conforme o necessário. "Da cela à Justiça, por exemplo, o preso é ameaçado por diversas vezes. E quando ele vai depois, nega o que ocorreu porque está à mercê dos agentes. Ele sabe que ele pode aparecer morto com a justificativa de suicídio", relata.

Conforme Maria Tereza, o poder público precisa repensar a forma como essas denúncias são investigadas. "Minas vende um sistema prisional que não existe, todas as respostas para estes casos são sempre as mesmas. Falam que vão investigar e punir, só que ninguém é punido, só é transferido. A violência que acontecia aqui, passa a acontecer lá", denuncia. 

Como denunciar

A denúncia pode ser feita na primeira página da plataforma. Após escrever o relato, o denunciante deve selecionar qual o tipo de violação e indicar a unidade em que ela ocorreu. "A gente sempre preza muito pelo anonimato, porque ele garante a preservação da pessoa que está presa. Antes de divulgar,  nós fazemos um tratamento dessas denúncias para não expor ainda mais a pessoa que se encontra nessas unidades", reforça a professora.

Investigação

A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, responsável pela administração dos presídios e das unidades socioeducacionais, informou, por meio de nota, que todas as denúncias relativas ao sistema prisional são apuradas com rigor quando formalizadas.

"O Departamento Penitenciário de Minas Gerais caminha lado a lado com o Poder Judiciário e com a Defensoria Pública, a fim de que os seus órgãos fiscalizadores estejam sempre atuantes, sendo mais um aliado na boa execução da política pública voltada à custódia e ressocialização da pessoa presa", disse em nota. A pasta garantiu também que os relatórios ou questionamentos direcionados à ela são analisados pelas áreas técnicas, com o objetivo de aprimorar e melhorar o serviço.

 

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