Tragédia de Mariana

Com R$ 11,8 bi, Fundação Renova construiu apenas cinco casas no 'novo Bento'

Do montante total investido na fundação, R$ 1,2 bilhão foi aplicado no reassentamento de atingidos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, mas obras estão em fase inicial

Por Lara Alves
Publicado em 26 de fevereiro de 2021 | 06:00
 
 
 
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Meia década transcorreu após o fatídico 5 de novembro de 2015 quando rompeu-se a barragem de Fundão, em Mariana, na região Central de Minas Gerais, e passados cinco anos e três meses, imbróglios sobre o pagamento de indenizações e o reassentamento do distrito de Bento Rodrigues, destruído pelo mar de rejeitos, mantêm-se tão presentes quanto à época – bem como a frustração de famílias que tudo perderam com o colapso da estrutura pertencente à mineradora Samarco.

A lentidão na construção do chamado “Novo Bento Rodrigues” e a morosidade para reparação moral e material às vítimas contrastam com os grandes montantes recebidos pela Fundação Renova – instituição criada com o único fim de reparar danos ligados à tragédia – das mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton que a mantêm. Relatório entregue na quinta-feira (25) à pedido da reportagem indica que foram gastos R$ 11,8 bilhões com ações de reparação e compensação desde a criação da Renova, em junho de 2016 – do montante, R$ 1,2 bilhão foi aplicado no reassentamento de atingidos. 

A cifra bilionária bastaria à compra de cerca de 81.900 apartamentos do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), mas, em contrapartida, significou a construção de cinco casas no reassentamento de Bento Rodrigues. Não apenas, segundo o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), nenhum morador das regiões afetadas pelo rompimento, cujos estragos estenderam-se até o Espírito Santo, foi integralmente indenizado até hoje – mais de cinco anos depois. A fortuna entregue à Fundação Renova é tão considerável que corresponde à receita de Mariana, em 2017, multiplicada por 38 – segundo informação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município arrecadou R$ 309 milhões àquele ano.

A ausência de explicações para a lentidão na reconstrução de distritos destruídos pela lama, como Paracatu de Baixo, em Mariana, e Gesteira, no município de Barra Longa, e outras irregularidades percebidas na direção da Fundação Renova são as razões que explicam o fato do Ministério Público mineiro ter decidido ajuizar uma ação, informada nessa quarta-feira (24), sob recomendação do Ministério Público Federal (MPF) pedindo à Justiça de Minas Gerais a extinção da instituição mantida pelas mineradoras responsáveis pela tragédia.

Salários exorbitantes e incompatíveis com a média nacional, quantias inexplicáveis aplicadas em publicidade e anomalias nos cargos de direção são alguns dos argumentos contidos na ação de 144 páginas a que a reportagem acessou. Para os promotores Gregório Assagra de Almeida e Valma Leite da Cunha, que assinam o pedido de extinção da Renova, o fato da direção e dos principais conselhos da fundação serem majoritariamente ocupados por funcionários transferidos da Vale e da Samarco retira a autonomia e o caráter de independência necessário à instituição que, aliás, foi reprovada por quatro vezes seguidas na prestação de contas entregue ao órgão do Estado de Minas Gerais.

Segundo o procurador-geral de Justiça, Jarbas Soares Júnior, do Ministério Público, são muitas as irregularidades encontradas pelo órgão na gestão da Fundação Renova. “Chegamos à quarta vez consecutiva à rejeição das contas da Renova. Entendemos que não há condições dela manter seu funcionamento, se é que existiram algum dia”, afirma.

Salários e publicidade

O pagamento de salários incompatíveis com a lógica de mercado e o dispêndio com uma agência publicitária estão entre os argumentos apresentados pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) na ação que pede a extinção da Fundação Renova. Foram R$ 17,4 milhões pagos pelas mineradoras à agência para que circulassem 861 propagandas em canais de televisão e 756 em emissoras de rádio. Órgão considerou que publicidade feita tinha “claro propósito de promover a imagem das empresas causadoras do dano, mas não de gerar informação”.

Além da extinção da fundação, ação ajuizada também pede indenização de R$ 10 bilhões por danos morais ocasionados pela lentidão no processo de reparação. Em relação aos salários, foi constatado que diretores recebiam mensalmente quantias superiores a R$ 100 mil – quando, segundo a ação, a remuneração média para os cargos em questão gira em torno de R$ 6.823.

Outro lado

Questionada pela reportagem sobre as irregularidades apontadas pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) na ação que pede sua extinção, a Fundação Renova respondeu por meio de nota à noite de quinta-feira (25) que discorda das alegações feitas pelo órgão sobre as contas da instituição e declarou que irá contestar o pedido de intervenção proposto no pedido. De acordo com a entidade, contas são submetidas a auditorias externas, e, sobre a remuneração de diretores – considerada exorbitante pelo MP –, a Renova declarou que “adota uma política de mercado com valores compatíveis com as responsabilidades assumidas” e afirmou não serem os valores aportados para manutenção da fundação e pagamento de salários contabilizados nas quantias destinadas à reparação e compensação dos danos.

Em relação às críticas sobre gastos com publicidade, a instituição disse que “o investimento é oriundo dos recursos administrativos da Fundação Renova, que não são destinados aos programas de reparação e compensação”. Sobre a finalidade das propagandas, afirmou que “destina-se a difundir, para atingidos, sociedades atingidas e amplos segmentos da sociedade brasileira, a plataforma de dados sobre a reparação”.

Em relatório enviado à reportagem, a Renova informou que pretende gastar R$ 5,86 bilhões com as ações de compensação e reparação em 2021 e, com isto, subirá para R$ 17 bilhões o total gasto. Em relação às obras do reassentamento de Bento Rodrigues, a Fundação declarou que “95% das obras de infraestrutura estão concluídas, considerando via, drenagem, energia elétrica, redes de água e esgoto das ruas”, e detalhou que o posto de saúde e de serviços está concluído e a escola em fase final de acabamentos. Vinte casas estão em construção, afirmou a entidade.

Paracatu de Baixo, outro distrito afetado pela tragédia, reúne 97 famílias que optaram por viver no reassentamento. De acordo com a Fundação Renova, sete casas tiveram obras iniciadas e a infraestrutura está em fase avançada. Em Gesteira, no município de Barra Longa, o projeto do reassentamento está em curso. Outras 147 famílias dos três distritos optaram por não viver nas três comunidades que serão criadas.

“Ao todo, 60 imóveis foram adquiridos para famílias que optaram por esta modalidade de reparação do direito à moradia, sendo 19 imóveis para reformar, 37 imóveis para construir e 4 lotes vagos”. Nas zonas rurais dos dois municípios afetados, oito casas foram entregues às pessoas que optaram por viver lá.

Leia na íntegra a nota da Fundação Renova:

A Fundação Renova discorda das alegações feitas pelo Ministério Público de Minas Gerais relacionadas às contas da instituição e informa que irá contestar nas instâncias cabíveis o pedido de intervenção proposto em Ação Civil Pública nesta quarta-feira (24).  

Além das prestações de contas realizadas anualmente, a Fundação também encaminha ao MPMG as respectivas aprovações de suas contas feitas pelo Conselho Curador, pelo Conselho Fiscal e pela empresa independente responsável pela auditoria das demonstrações financeiras, conforme prevê a Cláusula 53 do TTAC. 

As contas da Fundação Renova são ainda verificadas por auditorias externas independentes, que garantem transparência no acompanhamento e fiscalização dos investimentos realizados e dos resultados alcançados. As contas da Fundação foram aprovadas por essas auditorias. 

A respeito do questionamento do MP relacionado ao superávit da Fundação Renova em 2019, é importante esclarecer que é recomendável que instituições do terceiro setor trabalhem com superávit, indicador de que o trabalho está sendo realizado de forma qualificada e técnica. No caso da Fundação Renova, o valor relativo ao superávit é reaplicado nas ações de reparação do ano seguinte. 

Sobre a remuneração de seus executivos, a Fundação Renova esclarece que adota uma política de mercado, com valores compatíveis com as responsabilidades assumidas. Importante esclarecer que os valores aportados pelas mantenedoras para o custeio da fundação (salários e custos administrativos) não comprometem e não são contabilizados nos valores destinados à reparação e compensação dos danos causados pelo rompimento de Fundão.  

Cabe ressaltar que a Fundação Renova é responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, cujo escopo engloba 42 programas que se desdobram nos projetos que estão sendo implementados nos 670 quilômetros de área impactada ao longo do rio Doce e afluentes e em ações de longo prazo. Cerca de R$ 11,8 bilhões foram desembolsados pela Fundação Renova até o momento, tendo sido pagos R$ 3,26 bilhões em indenizações e auxílios financeiros para 320 mil pessoas até janeiro deste ano. 

As indenizações ganharam novo impulso com o Sistema Indenizatório Simplificado, implementado pela Fundação Renova a partir de decisão da 12ª Vara Federal em ações apresentadas por Comissões de Atingidos dos municípios impactados. Ele tem possibilitado o pagamento de indenização a categorias com dificuldade de comprovação de danos. O primeiro pagamento por meio do sistema foi realizado em setembro. Até o início de fevereiro de 2021, mais de 5 mil pessoas foram pagas pelo Sistema Indenizatório Simplificado. O valor ultrapassou R$ 450 milhões. 

Reparação 

A Fundação Renova permanece dedicada ao trabalho de reparação dos danos provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), propósito para o qual foi criada.  

As obras dos reassentamentos têm previsão de desembolso de R$ 1 bilhão para 2021, um aumento de 14% em relação ao ano anterior. O valor refere-se a todas as modalidades de reassentamento, englobando as construções dos novos distritos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, e, também, a modalidade de reassentamento Familiar e a reconstrução de residências em comunidades rurais. O avanço da infraestrutura, priorizado dentro do plano estratégico de prevenção contra a Covid-19, permitirá a aceleração da construção das residências das famílias atingidas. Assim, os reassentamentos coletivos ganham desenhos de cidades planejadas.  

A questão do prazo de entrega dos reassentamentos está sendo discutida em um Ação Civil Pública (ACP) em curso na Comarca de Mariana, tendo sido submetido recurso para análise em segunda instância (TJMG), o qual ainda aguarda apreciação e julgamento. Nesse contexto, foram expostos os protocolos sanitários aplicáveis em razão da Covid-19, que obrigaram a Fundação a desmobilizar parte do efetivo e a trabalhar com equipes reduzidas, o que provocou a necessidade de reprogramação das atividades. 

A água do rio Doce pode ser consumida após passar por tratamento convencional em sistemas municipais de abastecimento. Além disso, foram recuperados 113 afluentes, pequenos rios que alimentam o alto rio Doce. Cerca de 888 nascentes estão com o processo de recuperação iniciado. Até o momento, as ações de restauração florestal alcançam mais de 1.000 hectares em Minas Gerais e no Espírito Santo, uma área equivalente a 1.000 campos de futebol. 

Na área de saneamento, 9 municípios iniciaram obras para tratamento de esgoto e resíduos sólidos com recursos repassados pela Fundação Renova. Estão previstos R$ 600 milhões para projetos nos 39 municípios impactados. 

Em 2020, a Fundação iniciou um repasse de R$ 830 milhões aos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo e prefeituras da bacia do rio Doce, para investimentos em infraestrutura, saúde e educação. Esses recursos promoverão a reestruturação de mais de 150 quilômetros de estradas, de cerca de 900 escolas em 39 municípios e do Hospital Regional de Governador Valadares (MG), além de possibilitar a implantação do Distrito Industrial de Rio Doce (MG).

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