Especialistas ouvidos pela reportagem ressaltaram que o relatório do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) sobre o acidente que vitimou a cantora Marília Mendonça e outras quatro pessoas tem o objetivo de prevenir novos acidentes. O intuito do órgão não é achar culpados para o ocorrido. A queda do avião ocorreu no dia 5 de novembro de 2021 em Piedade de Caratinga, no Rio Doce. O documento de 64 páginas foi divulgado nessa segunda-feira (15).
"As investigações não são para encontrar culpados ou causa, são para aumentar ainda mais a segurança operacional de voos”, explicou o bacharel em Ciências Aeronáuticas pela FUMEC, gestor de Segurança Operacional pela ANAC e coordenador de instrução de voo na VelAir Escola de Aviação Civil, Estevan Velasquez.
“Na aviação, a gente trabalha com segurança o tempo todo. Todas as partes envolvidas em um voo têm que fazer parte da contribuição para que sejam retirados do dominó. Nunca tem uma única causa, são vários fatores em dominó, que se tirar uma peça, você não vai ter o acidente, o dominó vai parar onde falta a peça. O risco existe, não adianta, risco é inerente a qualquer atividade. Por conta desse relatório final, as recomendações serão atendidas e vamos evitar que ocorra de novo algo da mesma forma. O relatório é uma melhora para a aviação”, disse.
Wagner Cláudio Teixeira, piloto com mais de 30 anos de experiência, advogado e primeiro secretário da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB-MG, avaliou que os relatórios finais do Cenipa são sempre muito detalhados, mas que, em alguns casos, como o da Marília Mendonça que envolve aeronaves de pequeno porte a investigação pode ficar prejudicada. Isso porque, segundo Teixeira, aeronaves de pequeno e médio porte não possuem gravadores de voz e dados instalados. A apuração, então, deixa de lado alguns detalhes. “Mas as análises técnicas suprem, de alguma forma, essa ausência”, ponderou.
Experiência com aeronaves grandes
Outro ponto abordado pelos dois especialistas é de que a experiência do piloto com os padrões da aviação estabelecidos no RBAC 121, ou seja, para aviação comercial e aeronaves maiores, pode ter sido um dos fatores contribuintes no acidente. O Cenipa também concluiu desta forma.
“Pelo tamanho e peso da aeronave, os procedimentos de pouso diferem. Em uma operação com o RBAC 121 (regulamentação para aeronaves de grande porte), o tráfego de aeródromo é feito, geralmente, estendendo as pernas do circuito de tráfego tornando-as mais longas para permitir o enquadramento perfeito nas finais dos aeroportos que operam em condição visual. Um piloto operando sob esse regulamento, por muitos anos, pode adquirir o hábito de fazer sempre o circuito de tráfego alongado, até se acostumar novamente com aeronaves de médio e pequeno porte. Quando o relatório se refere ao fato de proporcionar mais conforto aos passageiros é quando o piloto, ao alongar as pernas de um circuito de tráfego permite que ele faça curvas mais suaves proporcionando esse conforto. Pernas de tráfego mais curtas exigem curvas acentuadas para enquadramento no trajeto final para pouso”, explicou.
A fala do especialista ocorre com base em uma das conclusões do Cenipa. Para o centro de investigação, como o piloto operou por 10 anos em empresa regida pelo RBAC 121 como copiloto de A-319/320 — modelo atualmente usado pela Latam, por exemplo — “considerou-se que ele pode ter optado por alongar a perna do vento (reduzir a altitude a uma distância maior da pista) a fim de buscar uma aproximação final mais longa, a qual tende a ser mais confortável para os passageiros”.Essa aproximação mais longa pode ter feito com que a altitude de aproximação fosse equivocada. “No que diz respeito ao perfil de aproximação para pouso, houve uma avaliação inadequada acerca de parâmetros da operação da aeronave, uma vez que a perna do vento foi alongada em uma distância significativamente maior do que aquela esperada para uma aeronave de “Categoria de Performance B” em procedimentos de pouso sob VFR”, concluiu o Cenipa.
Outro ponto apresentado pelo órgão é a possibilidade de a tripulação ter focado na pista de pouso em vez de manter uma “separação adequada com o terreno em aproximação visual”, e por isso, a colisão com a linha de transmissão da Cemig. O relatório aponta que os fios de alta tensão estavam em baixo contraste com o relevo, apesar de as torres estarem bem visíveis.
“A questão do contraste dos fios com a torre mostra que o piloto poderia ver a torre, mas não veria o fio, é muita longe essa distância (entre as torres). Quando a gente está voando, é mais fácil ver o recorte no mato que as companhias fazem do que os fios e as torres. Dificilmente você vê o fio. Então realmente pra quem voa, passa muito rápido, ainda mais em procedimento final de aproximação, onde piloto tem a maior carga de trabalho possível. É uma sequência de ações a serem feitas, dificilmente ele fica olhando para os lados e em volta. Você está fixado, olhando para a pista. Isso não indica uma falha, mas sim uma peculiaridade do lugar”, disse Estevan Velasquez. Ele complementa que o fato de a torre e a linha de transmissão estarem fora da área que exigiria uma sinalização, mostra que “nem tudo o que está na lei é certo”.
“Pela legislação não tinha nada errado, estava tudo dentro da lei. Ninguém cometeu erro. O que o piloto fez não foi errado, não ter a sinalização não era errado. Agora a gente vê que, infelizmente, com todas essas características juntas, não poderia ser assim”, avaliou.
Recomendações
O relatório final do Cenipa traz cinco recomendações para a melhoria da segurança na aviação, além de duas corretivas.
Em junho de 2022, foi feita uma vistoria na PEC Táxi Aéreo, empresa responsável pela aeronave e pelo voo. Constatou-se que os processos de identificação de perigos e processos de avaliação e controle de riscos não atingiram o nível operacional e, por isso, a empresa fez um Plano de Ações Corretivas para melhorar o Sistema de Gerenciamento da Segurança Operacional (SGSO).
Outra ação corretiva foi elevar a altitude em que os aviões se aproximam do aeródromo de Ubaporanga. Desde 20 de abril deste ano, a altitude de tráfego passou a ser 3.300 pés, o equivalente a cerca de 1km de altura.
Já as recomendações são direcionadas à Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA), e à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Entre os itens estão: uma uniformização de duas regras diferentes na aviação constantes na Instrução do Comando da Aeronáutica (ICA) e no Regulamento Brasileiro da Aviação Civil (RBAC), o incremento de ações para melhorar a cultura da segurança e gerenciamento de riscos, além de sinalizar, em caráter excepcional, a linha de transmissão atingida pela aeronave que levava Marília Mendonça.
A Aneel e o Decea devem avaliar, em conjunto, a implementação de requisitos de sinalização de redes de transmissão e de distribuição nos arredores de aeródromos, principalmente naqueles situados em regiões com relevo acidentado.
“Recomendações de segurança são aquelas destinadas a todos os órgãos e entidades que podem, de alguma forma, contribuir com a melhoria da segurança, especificamente naquilo que pode ter contribuído com o acidente. São recomendações e não determinações. Já as ações corretivas são destinadas ao operador e ao órgão fiscalizador (ANAC) para que se cumpram recomendações de segurança para elevar o nível de segurança desse operador e para testar os mecanismos de controle da segurança de um modo geral”, explicou Wagner Teixeira.