Aos 49 anos, a professora Simone Silva enfrenta sua maior batalha. A casa dela, em Barra Longa, na região Central, não foi invadida pelos 39,2 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro que vazaram da barragem de Fundão, em Mariana, na mesma região. No entanto, desde o dia 5 de novembro de 2015, ela luta para ser considerada uma atingida pela tragédia. Assim como ela, há muitos afetados que ainda são invisíveis para a Fundação Renova – entidade criada para atender as vítimas. Alguns deles não viram suas casas, móveis e lembranças indo embora com a lama, mas há outros tipos de sofrimentos. Crianças e adultos perderam a saúde e a alegria.
Na casa da educadora, a pequena Sofya Silva Marques, 3, passou a ter diarreia, alergias, e enjoos. Mais tarde, a criança foi diagnosticada com intoxicação por metais pesados. O filho Davidy Silva Marques, 16, não tem mais o convívio no campo de futebol com os amigos e anda depressivo. “Sofya não tem liberdade. Ela brinca na porta de casa e volta coçando. Com 3 anos, não viveu nada de criança. Vive de medicamentos, noite e dia. A festa de aniversário, que é um sonho dela, não tem como fazer. O que a gente ganha hoje não é suficiente para manter a casa. E eu ainda não sou considerada uma atingida porque a lama não veio na minha casa”, criticou Simone.
Além de Sofya, outras dez pessoas passaram por exames e tiveram a intoxicação por metais pesados (arsênio e níquel) confirmada. O estudo foi feito pela médica Evangelina Vormittag, do Instituto Saúde e Sustentabilidade. Os pacientes realizaram os exames em março de 2017, e dez deles repetiram em 2018. A médica considera o cenário muito preocupante, já que não há um estudo que mostre a fonte dessa contaminação, que pode ser o ar, a água e até o solo.
“Esses metais são tóxicos, podem gerar mutações, atrapalhar o desenvolvimento das crianças e causar câncer”, explicou Evangelina. Nicolas Domingos de Sousa, 3, é outro diagnosticado. Ele passa três semanas do mês “gripado”. A coceira não o deixa em paz, e a pele já está marcada com as feridas deixadas pelas unhas. “Meu filho está perdendo a infância dele, a alegria. A gente não tem apoio nenhum, eu não tenho de onde tirar mais dinheiro”, lamenta a mãe, Andréa Domingos, 38.
As mães das duas crianças intoxicadas se preocupam também com a alimentação, já que não confiam em nada que cresce por onde passaram os rejeitos. “Antes, as verduras vinham da roça. Agora, preciso comprar tudo. Não confio nem na água”, conclui Simone.
Adolescente perde sonho
A rotina de Davidy Silva Marques, 16, mudou após o rompimento da barragem de Fundão. Há três anos, o adolescente chegava da escola, lanchava e ia direto para o campo de Barra Longa treinar. O objetivo: ser jogador de futebol.
Depois que a lama tomou conta, ele passou a apresentar depressão. “Eu tinha ganhado uma chuteira nova, quando consegui jogar de novo, ela não servia mais”, diz. A diversão dele e dos amigos agora é passar as tardes no quarto jogando videogame.
Renova realiza estudos
A Fundação Renova reconheceu que há questões relacionadas à saúde dos atingidos. Os impactos estão mais ligados a saúde mental, intoxicação por metais e problemas respiratórios. A entidade informou que está em curso o estudo de Avaliação de Risco a Saúde Humana, financiado pela Renova e que usa metodologia da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde. “O objetivo é, de um lado, investigar o risco à saúde pelo rejeito e metais pesados do rio Doce e, por outro, monitorar o impacto da poeira e das obras na vida das pessoas. Com os resultados definitivos, será possível entender esses impactos e aplicar políticas eficientes”, informou, em nota. A fundação ressaltou que apoia a gestão pública e que, em agosto de 2018, Mariana e Barra Longa tinham 80 profissionais de saúde.
Relembre
Destruição
Dezenove pessoas morreram, e a tragédia deixou rastros em 39 municípios de Minas e Espírito Santo. Foram 670 km atingidos. Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Mariana foram devastadas pela lama. O rejeito chegou aos rios Doce, Gualaxo do Norte e Carmo.
Atingidos
A Fundação Renova diz que, até setembro deste ano, foram encaminhados para o Comitê Interfederativo, 30.788 cadastros, ou mais de 80 mil pessoas. Sobre as que não são consideradas atingidas, a Renova informou que não comenta casos particulares e que os critérios de elegibilidade estão previstos em um acordo firmado com empresas e Ministério Público.