Quase 5 anos depois

Moradores do Córrego do Feijão tentam se reerguer após tragédia histórica

A memória da perda de amigos, colegas de trabalho e parentes segue viva enquanto eles tentam dar novo significado ao local

Por José Vítor Camilo
Publicado em 02 de dezembro de 2023 | 03:00
 
 
 
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Do alto do mirante construído pela Vale sobre a antiga caixa d'água da comunidade, é possível ver, ao longe, a barragem que se rompeu e formou uma onda de lama que, em 2019, arrastou e matou tudo que encontrou pela frente em Córrego de Feijão, bairro rural de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. Passados quase 5 anos do fatídico dia 25 de janeiro, enquanto batalham para superar o trauma, os moradores que restaram na comunidade - boa parte foi embora após o rompimento - tentam ressignificar o lugar que chamam de casa, é claro, sem deixar que os 272 mortos sejam esquecidos.

O projeto de ressignificação da comunidade busca, segundo a mineradora, "a melhoria da qualidade de vida e o fortalecimento da economia" do local. Para isso, a empresa promoveu obras para a urbanização completa do Córrego do Feijão, o que incluiu um novo sistema de saneamento básico, a modernização da rede de abastecimento de água, instalação de nova iluminação pública e a pavimentação das ruas.

Neste ano ficou pronta a Praça 25 de janeiro, que inclui o Mercado Central Ipê Amarelo, o Centro de Cultura e Artesanato Laudelina Marcondes e duas cozinhas comunitárias. Os equipamentos foram entregues à população, que é a responsável pela gestão.

Nos próximos três anos, deverão ser finalizadas ainda as obras do novo campo de futebol do "Novo Ideal", time amador que perdeu parte de seus atletas na tragédia; e, ainda, um parque com trilhas e espelhos d'água, que serão novas opções de lazer para os moradores e turistas.

Gerente de Fomento Econômico da Diretoria de Reparação de Brumadinho na Vale, Flávia Soares explica que, por trás das obras entregues, há também um trabalho para fomentar a economia e o turismo local, por meio de assessorias técnicas para os negócios locais. 

"A gente tem hoje 21 negócios sendo assessorados. São produtos que são vendidos aqui (no Mercado) ou em sua própria lojinha. A gente espera que, com a vinda do memorial das vítimas para cá, haja um fluxo maior de turistas e, por isso, estamos preparando a comunidade para receber bem as pessoas e se beneficiar com isso", detalha.

Luta diária

"Dia 25 é todo dia, sabe? A gente lembra dos helicópteros, dos corpos chegando, lembra de tudo. Até hoje, qualquer barulho ficamos com medo. Outro dia teve uma sirene ali, e todos se assustaram". A fala é de Pulcina de Oliveira Lima, de 41 anos, que, ao lado de outras seis mulheres da comunidade, integra um dos projetos econômicos incentivados pela Vale, o "Aromas da Terra".

O grupo produz sabonetes, velas, escalda pés entre outros produtos e cosméticos. Entretanto, o projeto ainda não garante o sustento das famílias, mas tem ajudado na superação do trauma. "É uma distração, né? Antes de ter o 'Aromas', a gente estava em casa, à base de remédio. Depois que a gente veio para cá, a cabeça da gente já deu uma aliviada", garante.

Em um dos extremos da praça inaugurada este ano fica a horta agroflorestal "Cheiro Verde", que já existia desde 2016 na comunidade e tinha Aline Aparecida Lopes Muniz, de 31 anos, como uma de suas responsáveis. Vez ou outra, ela também contava com a ajuda do pai, Levi Gonçalves da Silva, que, aos 59 anos, foi um dos diversos trabalhadores da mineradora que foram soterrados.

"Eu fiquei praticamente 2 anos sem conseguir entrar aqui. Toda vez que eu tentava, eu só chorava, porque lembrava dele. Pouco antes, ele tinha plantado uma roça de milho, abóbora aqui", contou emocionada a mulher.

Ainda segundo ela, após algum tempo, vizinhas a avisaram que era preciso limpar a horta, que estava "abandonada" desde a tragédia. "Limpamos a parte que meu pai plantou e, logo que começamos a preparar os canteiros para plantar de novo, recebi a notícia de que o corpo dele tinha sido encontrado", conta, emocionada, Aline.

A partir daí, ela voltou a cuidar diariamente da horta, que, hoje, ganhou um novo significado para ela, se tornando uma espécie de refúgio. "É um acolhimento para mim. Eu ainda lembro dele, mas, às vezes, eu sinto como se ele tivesse aqui, me ajudando, aconselhando, sabe? Quando estou meio ruim, venho para cá (horta) e vou lá para debaixo da árvore, que é onde gosto de sentar, bater um papo", completa.

Futuro incerto

Apesar de todo o incentivo da Vale, os moradores de Córrego do Feijão ainda convivem com a incerteza sobre o futuro da comunidade. Mãe de Priscila Helen Silva, uma das vítimas do rompimento, Maria Regina da Silva, de 59 anos, mais conhecida como Dona Regina, é hoje integrante do conselho fiscal da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do rompimento da Barragem de Brumadinho (Avabrum).

Ela destaca que, após o rompimento, uma parte de Córrego do Feijão, onde ficava o campo de futebol e a Igreja Matriz da comunidade, foi utilizada pelo Corpo de Bombeiros para o recebimento das vítimas, o que aterrorizou principalmente quem vivia ali perto. Segundo ela, antes da lama, cerca de 600 famílias viviam no local. Hoje, estima-se que existam entre 150 e 200 famílias.

"Estava todo mundo mentalmente abalado, sem nenhuma condição, e a Vale começou a comprar as casas. Muitos entraram em desespero e venderam. Muitas destas famílias perderam aquele dinheiro e não conseguiram comprar outra casa. Muitos estão arrependidos de terem vendido, pois hoje pagam aluguel por terem aceitado aquilo no momento de desespero", afirma Dona Regina sobre a redução na população do local.

A gerente de Fomento Econômico da Vale, Flávia Soares, lembra que a compra dos imóveis foi uma determinação da Justiça. "A comunidade passou a ter o direito de sair, de ser indenizado. Era um desespero muito grande, porque as pessoas estavam convivendo com uma tragédia e uma ocupação do território pelas operações de buscas. A gente estava aqui em um cabo de guerra, entre manter essa população com uma proposta social de futuro, sólida, para fixar as pessoas aqui, e uma visão imediata de um sofrimento e de um dinheiro chegando. Então, as pessoas também estavam vendo ali uma oportunidade. Portanto, esse foi o ponto nosso de reflexão para a decisão de investir muito fortemente aqui", afirma a funcionária da mineradora.

Aline Aparecida garante que, apesar de todos os projetos, a incerteza ainda faz parte do dia-a-dia de todos. "Estruturar tudo de novo é difícil, muita gente foi embora, nunca vai ser a mesma coisa de antes. Ficamos sem ter certeza de quanto tempo vamos ficar aqui, nos perguntando se a Vale vai comprar tudo e deixar isso (obras) só para falar que fez", questiona a mulher enquanto colhe quiabos na horta.

A incerteza também ajuda a aumentar os problemas psicológicos entre os moradores. Segundo Aline, a ajuda da mineradora é importante, mas está longe de ser o suficiente. "Precisa fazer mais ainda. Muita coisa o que causou foi a mineradora. Não foi o pessoal, foi a Vale. Tem dias que é doído. Você não sabe o que vai surgir amanhã, e já bate aquela ansiedade. A maioria das pessoas hoje estão ansiosas, mas, aqui, é mais. Muita gente tomando remédio", completa.

Sônia Aparecida Silva, de 50 anos, se mudou para Córrego do Feijão aos 15 anos. Hoje responsável pela padaria que funciona na praça, em 2019 ela trabalhava na pousada que foi atingida pelo mar de rejeitos. No dia ela não estava no local, mas perdeu uma sobrinha de 16 anos que foi criada por ela.

Depois do ocorrido, ela entrou em depressão e passou a ter síndrome do pânico, precisando, assim como vários outros moradores do local, fazer tratamento psiquiátrico com medicamentos.

"Eu trabalhava em uma cozinha bonita, da pousada e, de repente, eu perdi tudo. Eu chorava todo dia, eu só perguntava cadê a minha vida, pedia ela de volta. Foi aí que eu resolvi entrar nesse projeto, e empreender", lembra Sônia com os olhos repletos de lágrimas.

Procurada pela reportagem de O TEMPO, a Prefeitura de Brumadinho informou que em 2021, dois anos após o rompimento, a cidade teve um total de 746 atendimentos psicossociais. Já de janeiro a março de 2023, foram registrados apenas 16 desses atendimentos pelos órgãos de saúde municipais.

Atualizada às 14h35 do dia 4 de dezembro de 2023

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