Pesquisa

Quase nove a cada dez pessoas com deficiência têm experiências ruins com médicos

‘Cansei de ser reduzida à minha deficiência’, desabafa mineira paraplégica; falta de segurança contribui para ‘ampliação da desigualdade na saúde’, avalia coordenadora

Por Juliana Siqueira e Gabriel Rezende
Publicado em 18 de abril de 2023 | 23:46
 
 
 
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Aos três meses de idade, a pequena Elisa Salles passou pela primeira cirurgia craniana. Três meses depois, foi a vez de ela ser submetida a um segundo procedimento cirúrgico. Portadora da síndrome de Jacobsen e da Síndrome de Paris-Trousseau, a menina, ainda tão pequena, viveu dias desafiadores ao longo de uma jornada que envolveu idas a consultórios médicos, buscas por diagnósticos, dúvidas e superação. Ao mesmo tempo em que ela crescia, algo também ficava maior no coração dos pais de Elisa: a desconfiança em relação a alguns médicos.

A família da menina, hoje com 9 anos de idade, está longe de estar sozinha nesse sentimento. Uma pesquisa da Sanofi, empresa global de saúde, mostra que 87% das pessoas com alguma deficiência no Brasil relatam experiências que prejudicaram a confiança delas em relação aos profissionais do setor. Apesar de a pesquisa não apresentar um recorte regional, o diretor de Pesquisas e Projetos do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG), Artur Oliveira Mendes, explica que essa realidade é comum em todos os contextos sociais, em função do preconceito enraizado na sociedade. Neste sentido, para o médico, a pesquisa “não retrata apenas o que acontece na área da saúde, mas na sociedade de maneira geral”. “Nos atendimentos, por ser espaço onde as pessoas já chegam fragilizadas devido algum condição que apresentem, estas questões acabam ficando mais evidentes”, afirma. 

Essas vivências negativas podem ter impacto na aceitação de intervenções médicas e contribuem para a ampliação da desigualdade na saúde, avalia a head de diversidade e cultura da empresa responsável pelo estudo, a coordenadora Neila Lopes.

"A falta de confiança é um dos principais motores das desigualdades na esfera da saúde. Como aponta a pesquisa, muitas pessoas de grupos minorizados tiveram experiências que prejudicaram sua confiança no sistema de saúde no geral. Isso limita o envolvimento com ensaios clínicos, a aceitação de intervenções médicas e o próprio envolvimento com o sistema de saúde, contribuindo na ampliação da desigualdade na saúde", pontua Leila.

'Falta interesse'

Na história de Marcelle e Roberto Salles, pais da pequena Elisa, há relatos que envolvem desde desconhecimento profissional para lidar com a situação da filha até falta de humildade dos médicos, segundo a mãe da menina. Conforme Marcelle relata, ela teve de lidar com atrasos em laudos, falta de informação, além de afirmações pesadas para o coração de pais, como “ela é inoperável” (o que provou-se o contrário). Lutando contra todas as evidências, coube a Marcelle e ao Roberto irem à luta. Eles pesquisaram artigos em inglês sobre a doença da filha, encontraram informações por conta própria e, munidos das próprias pesquisas, jogaram luz aos atendimentos médicos.

“Não necessariamente os profissionais são ruins, mas muitas vezes falta interesse, falta humildade. Em relação à Elisa, muitas vezes, eles tomam como verdade que ela vai ser sempre mais fraca, que vai ter dificuldades com a alimentação, mas ela surpreende. Se for comparar com outras crianças, a imunidade dela, muitas vezes, é até maior”, conta Marcelle.

Outro desafio vivido por Marcelle é o fato de que, muitas vezes, os médicos tendem a “achar normal” tudo o que acontece com a menina, por conta das síndromes. “Em algumas situações, também tomam por certo que ela vai ter determinado problema porque ela tem a síndrome”, diz ela. “Também encontramos muitos profissionais maravilhosos, mas dizer que hoje eu não tenho desconfiança… Já encontramos péssimos profissionais. O que a gente observa é que a maior parte dos médicos não têm interesse, querem terminar a consulta logo. Com isso, podem colocar a vida das pessoas em risco”, diz.

'Reduzida à deficiência'

Amanda Fontes (nome fictício a pedido da entrevistada), de 33 anos, também relata já ter passado por várias situações decepcionantes com profissionais de saúde. Ela, que é paraplégica, afirma que, por várias vezes, foi ‘silenciada’ pelos profissionais.

“Cansei de ser reduzida à minha deficiência. Mesmo os sintomas mais improváveis já foram ligados ao fato de eu não conseguir andar. É como se eu e a minha deficiência se confundissem. Passei por várias experiências ao longo da vida, tenho medo de expor e, em uma próxima consulta, ser ainda mais negligenciada”, afirma ela.

Transformação

Pai de Elisa e formado em filosofia, Roberto Salles resolveu levar para a vida profissional muito do que aprendeu ao longo dos anos da jornada com a filha. Ao observar que muitos profissionais não faziam a diferença ou se mostravam despreparados diante de condições de saúde específicas e de deficiências, ele resolveu lutar para que outras pessoas tivessem um atendimento diferenciado.

Atualmente cursando mestrado em biociência e saúde e com especializações em neurociência e educação, há quatro anos ele dá aulas para jovens e adultos com necessidades especiais, além de desenvolver palestras sobre inclusão. “Minha esposa e eu nos dispusemos a percorrer muitos consultórios. Lutamos por nossa filha, mesmo depois de muitos demonstrarem desconhecimento profissional. Depois de alguns anos de estudo, vi que, em muitos casos, uma palavra resume bem: despreparo”, conclui.

Minorias 

O objetivo do estudo foi mapear a confiança de vários grupos sub-representados na área da saúde, incluindo os deficientes. O estudo questionou 2.270 pessoas entre julho e agosto de 2022 de comunidades negras e de minorias étnicas, mulheres, pessoas com deficiência e comunidade LGBTQIAP+. O resultado foi de desconfiança média em relação aos atendimentos médicos de 75%. 

Conforme os entrevistados, as experiências negativas que afetaram a confiança em atendimentos médicos foram: "não se sentir ouvido" (37%), "receber um serviço ruim" (34%) e "explicações ruins" (33%). Além disso, uma em cada cinco pessoas ouvidas no estudo disseram que se sentiram 'indesejável' (20%), 'julgado' (20%) ou 'inseguro' (19%).   

"O estudo apontou que essa lacuna de confiança é maior para pessoas que pertencem a mais de um desses grupos. Por exemplo, 90% das pessoas com alguma deficiência e que se identificam como LGBTQIAP+ afirmam que tiveram uma experiência prejudicial à sua em confiança em relação ao sistema de saúde em geral", acrescenta Neila.

A pesquisa também apontou que a maioria dos participantes pode reconquistar a confiança nas consultas médicas. Para isso, 79% disseram que os atendimentos precisam ser "mais confiáveis" e 77% que precisam ser "mais transparentes" e tratar os pacientes "de forma justa".

Denúncias

Denúncias de más condutas médicas podem ser denunciadas ao Conselho Regional de Medicina (CNRM), orienta o diretor de Pesquisas e Projetos do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG), Artur Oliveira Mendes. “Muitas vezes, as denúncias servem para que os profissionais procurem atentar para a questão e o problema do preconceito. É importante que elas sigam o caráter pedagógico de provocar mudanças no sentido de melhorar o cuidado prestado”, afirma.

“É grande a luta para toda a sociedade melhor enxergar os grupos minoritários e as pessoas com deficiência, procurando garantir inclusão através do acesso e de alternativas mais equânimes para o cuidado. Precisamos seguir nos desenvolvendo e aprendendo”, completa.

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