ABANDONO

Rainha da Sucata: abandonado, prédio vira ocupação no meio do Circuito Liberdade

Mesmo sem programação há quatro meses, Governo de MG gasta R$ 26 mil ao mês com o Edifício Tancredo Neves

Por Isabela Abalen
Publicado em 09 de setembro de 2023 | 03:00
 
 
 
normal

Há um edifício esquisito em meio aos museus e palacetes do Circuito Liberdade, na região Centro-Sul de Belo Horizonte. Não é só o visual que causa estranheza – pela arquitetura colorida e um mix de materiais de 'sucata' –. Ele é o único prédio da praça que está abandonado. No meio de um dos maiores centros turísticos da capital, o Edifício Tancredo Neves padece sem visitantes. Ao redor do prédio, acúmulo de lixo. No teatro de arena, toca-se a vida real, protagonizada por pessoas em situação de rua. O edifício parece ter se concretizado no apelido que recebeu nos anos 1990: ‘Rainha da Sucata’. É, para quem passa, o “patinho feio” da Liberdade. 

O Rainha da Sucata está vazio há quatro meses, desde a rescisão do contrato com a Fundação Nacional de Artes (Funarte-MG) – que ficou responsável pelo prédio por cerca de três anos. Antes disso, já foi Centro de Informação ao Visitante do Circuito Liberdade, Hub Minas Digital, Museu de Mineralogia Professor Djalma Andrade e até a sede do Circuito Liberdade. Hoje, mais parece um fantasma do complexo turístico. Sua descrição no portal do Circuito envelheceu mal: “a proposta é que o prédio se torne um polo artístico”, continua publicado. 

De acordo com a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult), o Governo adotou medidas para garantir a “ordem e segurança do local”. Mesmo sem programação, o edifício gera um custo mensal de R$ 26 mil para o Estado. “As ações incluem contratação de portaria 24hrs, instalação de sistema de alarme e serviço de limpeza e manutenção”, descreve a Secult. Iniciativas mínimas para o interior do Rainha da Sucata. Do lado de fora, um grupo de pessoas em situação de rua fez o anfiteatro de moradia. O entorno de lixo e fezes afasta quem passa próximo.

“É lastimável termos um edifício tão emblemático, de tamanho valor histórico para Belo Horizonte, abandonado”, avalia a arquiteta e urbanista Celina Borges. “É uma contradição de berço. O Rainha da Sucata foi pensado para atender ao turismo. Foi um dos primeiros prédios da Liberdade e provocou que a praça se tornasse um centro cultural. Ele nasce com a ideia, e é sua primeira vítima. É um sintoma grave: o que seria, então, a valorização do turismo no Estado?”, questiona ela, que também é professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Borges reforça que o prédio foi um dos primeiros a serem construídos na praça e já chegou inovador, com um anfiteatro aberto à rua. “Indiretamente, ele serviu de inspiração para que a praça se tornasse mais aberta para o público. Surgiu ali a ideia: por que não abrir esses palacetes para o mundo?”, acrescenta. 

O abandono do Rainha da Sucata é visto como descaso por quem mora na região. “Tenho o costume de vir à praça e a situação desse prédio é muito triste. A nossa parte cultural está ficando desleixada e parece que só vai piorando”, lamenta a professora aposentada Lícia Vilela, de 63 anos. “Falta administração, investimento. Para nós que moramos na região tem ainda o fator da segurança. De noite, eu não passo na esquina do Rainha da Sucata, não me sinto segura”, continua.

Visitantes do Circuito Liberdade sentem a falta da atração 

Ana Flávia Gulfini, de 37 anos, usa a praça da Liberdade como rotina de trabalho: o lugar é um dos seus cenários favoritos para fotografar álbuns de aniversariantes e casamentos. As poses são sempre próximas ao Centro Cultural Banco do Brasil ou ao MM Gerdau, enquanto o Rainha da Sucata passa despercebido.

“Aproveito as belezas do lugar para fotografar minhas clientes. Tudo o que eu vejo aqui no Circuito Liberdade já visualizo um cenário, penso direto na foto. O Rainha da Sucata, para falar a verdade, nem havia reparado”, conta. Mesmo assim, ao olhar para o prédio, ficou curiosa. “Se não está sendo usado, é um desperdício. O órgão responsável tinha que investir. É até triste, em uma praça dessa, um prédio abandonado. Estou precisando de novos cenários, inclusive”, brinca.

A opinião é a mesma do professor Victor Martins, que se declarou um apaixonado pelo Rainha da Sucata. “Essa praça conta a história de BH, é importantíssima. Eu frequento aqui há muitos anos e sempre olho para o Rainha da Sucata. Ele é provocante e precisa de pessoas. Falta um dispositivo que atenda as necessidades das pessoas, seja cultural, artística, antropológica, o que for. Precisa de visitação para ter função social. Se não, para que existe um prédio?”, provoca. 

Já para o aposentado Peron Avelino, de 66 anos, o prédio é tão esquisito que precisa de uma programação, na sua opinião, à altura. “Sabe o que seria legal? Se abrissem o Rainha da Sucata para a juventude. Não sei, exposição de grafite, competição de rap, alguma coisa diferente assim, que ainda não tem na praça. Seria muito bacana”, propõe. 

Falta incentivo? 

Os prédios do Circuito Liberdade levam nos nomes as empresas que garantem as atrações, é o caso, por exemplo, do Memorial Minas Gerais Vale, da Casa Fiat de Cultura, do MM Gerdau e do BDMG Cultural. Segundo a Secult, o Governo está realizando “tratativas para que uma nova instituição assuma a gestão do espaço para dar continuidade às políticas públicas culturais desenvolvidas no Circuito Liberdade”. Não foi especificado, no entanto, quando e como o chamamento de investimento será feito. 

“Nesse caso, é responsabilidade do Estado primeiro. É a gestão pública do prédio que vai atrair o setor privado para investir em novas atividades ali. O Governo precisa criar leis de incentivo, falta vontade”, avalia Celina Borges. Segundo ela, um prédio ocupado atrai mais do que um abandonado. “O que vai atrair o setor privado é o Rainha da Sucata ativo. Daria para criar ali uma itinerância de gerações, exposições de obras de alunos das artes da capital. Explorar a arquitetura de BH, expandir para atividades na praça”, sugere. 

Do abandono à referência cultural ao abandono outro vez 

O esvaziamento do prédio preterido do Circuito Liberdade mais parece uma ironia do destino. Isso porque, na década de 1980, os arquitetos mineiros Sylvio de Podestá e Éolo Maia foram contratados para construírem dois banheiros públicos. À época, o terreno já estava abandonado em plena Praça do Governo, e a morte de uma menina de rua no local chamou atenção das autoridades. O projeto foi além dos banheiros e se tornou Centro de Apoio Turístico, aproveitando a proximidade com a Feira Hippie (hoje na avenida Afonso Pena). 

Desde a inauguração, o choque. “Ele chama atenção: é uma poética sublime do século 19. Provoca, imediatamente, ou o encantamento ou a repulsa. Há relatos de gente que deixou de frequentar a área só para não ver o edifício. Ao mesmo tempo, é inovador, rico em tonalidades e materiais, as crianças são fascinadas”, analisa Borges. O Rainha da Sucata já recebeu a fama de prédio mais feio do Brasil. “Mas de mais bacana também. Depois dele, nasceram tantos outros prédios coloridos na capital”, acrescenta a arquiteta. 

“Patinho feio” do Circuito Liberdade

Quando perguntado sobre o famoso “patinho feio” da Praça da Liberdade, o aposentado Peron Avelino apontou o dedo para o Rainha da Sucata. “Frequento a praça há anos, e ele sempre esteve assim. Feio, esquisito, não combina com as outras construções, parece perdido na praça. Também nunca o vi com alguma programação, não tem nada lá”, comentou, achando graça. A opinião do professor Victor Martins, que usa a praça para ler um livro, é totalmente oposta. “O prédio é maravilhoso. Parece uma arquitetura moderna, mas antiga. Esquisita, provocante. O confronto entre o conservado e o deteriorado é fenomenal”, elogia. 

De fato, o Rainha da Sucata causa confusão só pela arquitetura. Ganhou o apelido inspirado pela novela por ter a fachada formada por um mix de elementos regionais, como quartzito, ardósia, pedra-sabão e chapas metálicas. “Tem uma narrativa exagerada, fora do comum. Cada fachada tem uma característica e homenageia a história da cidade. Ainda conversa com referências europeias, como se dissesse: ‘estamos aqui, mas somos o mundo’”, descreve Celina Borges. “O Rainha da Sucata é, em si, um museu. Por isso a pena de estar abandonado”, lamenta.

O que diz a Secult na íntegra? 

"O prédio Tancredo Neves, conhecido como Rainha da Sucata, foi devolvido ao Governo do Estado há 3 meses. O local ficou sob responsabilidade da Funarte, do Governo Federal, por cerca de 3 anos.   

A Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais adotou medidas para garantir a ordem e segurança do local. As ações incluem contratação de portaria 24hrs, instalação de sistema de alarme e serviço de limpeza e manutenção. O custeio mensal para manutenção do edifício é de aproximadamente R$ 26 mil.   

O Governo do Estado, por meio da Secretaria de Cultura e Turismo, realiza as tratativas para que uma nova instituição assuma a gestão do espaço para dar continuidade às políticas públicas culturais desenvolvidas no Circuito Liberdade."

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!