ENTREVISTA

Tragédia de Brumadinho: Oito estratégias de busca nortearam os bombeiros

Em entrevista exclusiva, major descreve poder destrutivo da lama, destaca o papel da tecnologia de georreferenciamento para otimizar a operação e justifica por que esta é a última etapa de busca e salvamento

Por Manuel Marçal, Marcos Carreiro e Renato Crozatti
Publicado em 25 de janeiro de 2023 | 03:00
 
 
 
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AVISO: O conteúdo desta reportagem é considerado sensível. Apesar de não apresentar nomes, a matéria contém detalhes das buscas e do processo de identificação das vítimas da tragédia. Também há detalhamento sobre o resultado da força da lama sobre os corpos dos atingidos pelo rompimento da barragem naquele 25 de janeiro de 2019. 

Em 25 de janeiro de 2019, o major Rafael Neves Cosendey comemorava seu aniversário de 36 anos. Era uma sexta-feira e ele iniciou o dia com um pedal em volta da lagoa da Pampulha, algo que já havia se tornado rotina há cerca de um mês, desde que o Batalhão de Emergências Ambientais e Resposta a Desastres (Bemad) do Corpo de Bombeiro de Minas Gerais, do qual era subcomandante, havia se mudado para a região da Pampulha, em Belo Horizonte. O grupo saiu às 5h30 e, depois de percorrer cerca de 54 km, retornou para a primeira reunião de oficiais do batalhão, que durou toda a manhã. Tudo tranquilo até o relógio marcar 12h28.

O mapa de uma tragédia: Leia aqui a matéria completa

Naquele horário, a aproximadamente 60 km dali, rompia-se uma barragem pertencente à Vale, em Brumadinho, notícia que chegou àquele grupo de oficiais logo em seguida. Confirmada a informação, o Corpo de Bombeiros deslocou seu contingente para o local, enquanto Cosendey se dirigiu ao Batalhão Aéreo, que fica a menos de 1 km de onde estava. Minutos depois, ele sobrevoava o local onde antes estava a barragem I, na Mina Córrego do Feijão. “Aquilo ali foi um campo de guerra”, relata.

Aquele era o terceiro rompimento de barragem no qual Cosendey atuava. Em 2007, ele esteve presente na operação pós ruptura da barragem de bauxita da mineradora Rio Pomba Cataguases, em Miraí. Em 2015, fez parte da equipe que atuou nas buscas após o colapso da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana. No primeiro, o dano ambiental foi imenso, mas nenhuma pessoa morreu. No segundo, considerado o maior desastre ambiental do país, 19 pessoas perderam a vida. Do ponto de vista humano, porém, nada se compara a Brumadinho, o que Cosendey conta no decorrer desta reportagem.

Em quatro anos de operação em  Brumadinho, o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais usou oito estratégias diferentes para realizar as buscas por vítimas. As táticas foram sendo modificadas com o passar do tempo, a depender de diversos fatores, como número de profissionais envolvidos, alteração da consistência dos rejeitos, mudanças climáticas e chegada de maquinário pesado para auxiliar na movimentação e análise da lama. O trabalho chegou, inclusive, a ser suspenso por quase cinco meses, em 2020, devido aos protocolos de segurança de Covido-19 em Minas Gerais.

Outro marco das etapas anteriores de busca, segundo lembra o major, foi a utilização de cães em larga escala. Inclusive, com reforço de caninos de outros estados e corporações da segurança pública. Em Minas Gerais, todos os cães morreram pouco tempo depois. 

Pensada ao longo de 2020 e implementada em 2021, a estratégia 8 é a última estabelecida pelo Corpo de Bombeiros e não haverá outras. Segundo os cálculos da corporação, ela está prevista para durar três anos.

O major Rafael Neves Cosendey pontua que foi necessário conversar com as famílias das vítimas e explicar os próximos passos, a fim de, de forma sensível, dizer que seria necessário “peneirar” os rejeitos em uma estação de busca para encontrar segmentos dos familiares. “Vocês querem que localizemos as vítimas com as coordenadas geográficas em 3, 4 anos, ou em 2 ou 1 ano com localização por áreas?”, reproduz o questionamento levado àqueles que perderam entes queridos.

Segundo ele, as coordenadas geográficas dos corpos e segmentos de corpos tinham muita importância nas primeiras fases da operação. Porém, após a compreensão da dinâmica da lama, as buscas passaram a ser por área.“Pela experiência de 2019 e 2020, calculamos que seriam mais cinco anos de operação de buscas”.

Confira a seguir os principais trecho da entrevista

O Corpo de Bombeiros levou, de imediato, os equipamentos de georreferenciamento para atuar na tragédia de Brumadinho?

Os bombeiros usam muito o Google Maps, porque é uma ferramenta muito fácil para criar plataformas que podem ser compartilhadas. Então, do próprio celular, já começamos a fazer isso. Mas a própria aeronave tem um sistema no qual o piloto vai marcando no GPS os pontos importantes que existem naquele determinado desastre, à medida que a aeronave vai se deslocando. Em Brumadinho, já marcamos inicialmente onde havia vítimas pedindo socorro, assim como onde havia caminhões e estruturas que estavam soterradas, mas visíveis, porque, naturalmente, poderia haver vítimas ali com potencial de sobrevida. Da aeronave, além do dano, a gente avalia também os pontos de interesse principais para fazer busca, porque, em um desastre, temos três grandes pilares: o socorro às vítimas, o auxílio às vítimas e o restabelecimento de cenários, que já é pós-resgate. Então, nessa fase inicial, é preciso ser rápido em marcar onde há possíveis vítimas, sobretudo em um cenário com um tsunami de lama, pois ela soterra e cria dificuldade para a pessoa respirar.

Houve semelhanças com o rompimento da barragem em Mariana, em 2015?

Pela nossa experiência em Mariana, a primeira coisa que pensei foi: a primeira onda continua a descer e eu tenho que ir nas comunidades abaixo. Só que, em Brumadinho, a dinâmica do desastre teve um perfil completamente diferente do de Mariana, pois lá houve um volume muito maior e uma quantidade de vítimas menor; já em Brumadinho, houve um fluxo de volume (de lama) menor e uma quantidade de pessoas afetadas muito maior. Só que, na hora, a gente não tinha essa informação. Então, a gente foi até o entroncamento do rio Paraopeba e vimos que, ao longo desses 10 km, o rejeito tinha se dispersado muito. Ele continuava fluindo rio abaixo, mas a gente percebeu que o volume já tinha baixado bastante, então, a preocupação principal não se tornou a primeira onda, como foi em Mariana. A maior preocupação passou a ser o local por onde o rejeito passou. Lembro nitidamente de ver vários telhados no Parque da Cachoeira (comunidade em Brumadinho) em que só os telhados ficaram intactos, ou seja, ali poderiam ter pessoas diretamente afetadas.

Há informação de que algumas vítimas foram encontradas a muitos metros de profundidade.

Uma das vítimas, encontrada já com mais de 900 dias de operação, estava a mais de 20 metros abaixo do rejeito. A região era uma lagoa, na entrada do Córrego do Feijão. Então, esses 20 metros era a profundidade da lagoa, que foi ocupada pela lama. 

Os dados aos quais tivemos acesso mostram, em alguns casos, a profundidade na qual algumas vítimas foram encontradas. Isso também foi mapeado de maneira sistemática?

O avanço das fases da operação (são oito) foi acontecendo à medida que fomos desenvolvendo o banco de dados que começamos a colher ainda na primeira semana. E (a operação) se tornou um grande campo de planejamento científico. Na primeira semana, já trabalhávamos com o Google Earth com a visualização do relevo com todas as suas camadas de dificuldade. Até que a empresa fornecesse um software e técnicos para agregar e descobrir o que precisávamos para desenhar os nossos próprios protótipos, usamos a rede aberta. No terceiro ou quarto dia, já cruzamos a mancha afetada com a mancha prevista (no Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração, o PAEBM, feito pela Vale) — e elas foram muito congruentes — no Google Earth para ter uma visão tridimensional. Tanto que a locomotiva, considerada um dos objetos mais pesados ali no campo, foi levada pela lama no momento em que ela passou pela ferrovia e afundou em uma das duas lagoas que existiam logo depois do refeitório. Nós sabíamos, desde o início, que iríamos encontrá-la ali na região das lagoas e chegamos a ela com mais de 900 dias de operação, à medida que fomos cavando. Tudo isso foi um comportamento que fomos aperfeiçoando ao longo da operação.

E quais as outras dificuldades?

Ao longo dos 10 km atingidos pelo rejeito havia quase 1 km de distância entre uma margem e a outra. E havia lugares por onde não dava para atravessar. Na verdade, no início, a gente precisava dar uma volta (que demorava) de 50 minutos a uma hora para ir para a outra margem, via terrestre. Isso foi um dificultador tremendo para nós. Hoje, existe uma grande obra de engenharia lá com várias estradas de um lado para o outro. Naquele momento, não. Uma das maiores dificuldades que tivemos também foi fechar a relação das pessoas, porque, se você não sabe o que está procurando e onde, aonde vai procurar? Demoramos muito a ter uma relação fidedigna. Fora isso, quando a Vale deu ciência de que iria indenizar as famílias, pessoas “começaram a desaparecer”. Então, nas duas primeiras semanas, nós conectamos todos os órgãos de inteligência do país e descobrimos que pessoas que eram dadas como estando ali no dia do desastre foram encontradas, na verdade, em outros locais, outros estados. A intenção do grupo de inteligência, no primeiro momento, era fechar a relação real de pessoas. Esse foi um dificultador que durou mais de 15 dias.

Qual o procedimento depois de saber quem eram, de fato, os desaparecidos?

Confirmando onde estavam as vítimas, nós começamos a pegar o sistema de rádio de comunicação da empresa, todos os (números de) celulares das vítimas para ver a última ligação das pessoas, qual a última conexão à internet e qual o último ponto detectado desse celular. (Isso foi feito pela) Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e Polícia Federal. Pegamos todos os sistemas de transporte da empresa, caminhões, carros, todos eles também com o GPS, e começamos a traçar um grande banco de dados sobre o deslocamento desses veículos e sobre qual foi o último ponto no qual eles pararam. De repente, o caminhão parou depois que (a barragem) rompeu. Pegamos também o sistema de controle de entrada e saída do refeitório. Tivemos esse pensamento de olhar quem entrou para almoçar e não saiu, apesar de que alguns que saíram não registraram. Devido ao pânico, pularam e entraram nas caminhonetes que estavam passando ali. Então, a gente “planilhou” esse rol de informações para saber quem realmente estava ali e driblar as tentativas de fraude.

Era possível saber onde as pessoas estavam no momento do rompimento?

Com certeza, não, mas tendo uma área mais direcionada, a gente começa a entender um pouco melhor esse cenário. A partir do momento que temos um refeitório que está a menos de 1 km da barragem rompida e que não foi projetado para suportar a força do deslocamento (da lama), ele é demolido, soterrado e deslocado. Foi aí que nós começamos a pensar que não precisávamos procurar tanto no ponto onde era o refeitório, mas abaixo dele. Foi quando começou a entrar a estratégia de busca e salvamento que nós fomos elaborando ao longo desse processo, principalmente na primeira e segunda semanas. Por isso, a importância de se ter a coordenada geográfica de tudo o que era encontrado, e isso começou já no primeiro dia. Eu me lembro de passar a informação a todas as equipes já no primeiro dia: encontrou uma roda de caminhão, repassa a coordenada geográfica. Assim, fomos montando esse sistema. Geralmente, eu lançava esses dados ao final da noite. Na madrugada, na verdade, na primeira semana. Tem até alguns episódios de que o pessoal me pegava com a testa no notebook. Mas, com a coordenada geográfica e, depois, com a identificação de quem era aquela pessoa, a gente começava a entender a dinâmica e a força do desastre.

Qual a importância do trabalho da perícia e o que significa, na base de dados, “sem classificação”?

Nessa parte final, agora, passados mais de mil dias, há muita dificuldade em saber o que é osso humano e o que é osso animal. Só a perícia, muitas vezes, consegue dizer. Então, naqueles primeiros dias, tínhamos um dificultador muito grande, que era o cheiro, que inclusive, muitas vezes, confundiu os nossos cães. Em relação à falta de classificação na base de dados, isso ocorreu em situações em que a aeronave se deslocou, mas não constatou nada no local por algum motivo. Talvez fosse um corpo animal, talvez fosse porque alguém ligou ou um grupo de bombeiros voluntários e brigadistas, então íamos checar a informação, mas era um alarme falso. E isso foi muito comum. Fomos verificar e nada foi constatado.

Por que foram criadas as áreas de espera, aquela espécie de depósito a céu aberto dos rejeitos?

A tragédia em Brumadinho foi em janeiro e estávamos em pleno período chuvoso. Muitas vezes, as operações paravam por causa da chuva. Mesmo em dia de sol, o solo estava encharcado. Fazemos a busca de forma visual, superficial, ou com maquinário. Muitas vezes, fazia-se a busca no material em que estava muito ruim de ver, você não conseguia fazer a busca 100%. O próprio bombeiro (ali na operação) dizia: “Não dou ok nessa busca que fiz”.  Então, a partir do momento em que o bombeiro não tinha segurança naquele ponto, porque o rejeito estava muito liquefeito ou porque o rejeito estava muito ruim de se ver, ou a gente tirava aquele rejeito para uma área seca, ou a gente o estocava para depois fazer a vistoria. Essas são as áreas de espera legal totalmente controladas.

Como as áreas de espera foram utilizadas ao longo das estratégias de busca?

Um dos maiores problemas da operação e dificultadores é a hidrografia local. Muitas estratégias visavam realmente criar cursos de água para poder deixar aquela água (que estava ali) correr sem atrapalhar as outras área. Então, aquele rejeito que a gente retirava (de determinado ponto da área de busca), era colocado numa área de espera para poder ser vistoriado antes de ser descartado. Nós tínhamos ali um cuidado de fazer três dobras diferentes, três vistorias diferentes.

 

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