Dores na alma

Traumas psicológicos marcam a vida dos órfãos do feminicídio

Crianças e adolescentes passam a ter transtornos psicológicos e podem ter dificuldades em relacionamentos

Por Natália Oliveira
Publicado em 12 de junho de 2022 | 06:00
 
 
 
normal

Ainda aos 11 anos, Gabriela Campos Rezende da Silva, atualmente com 18 anos, teve a primeira de muitas crises de ansiedade. Naquela época, ela lidava com a separação dos pais e a violência do genitor, que posteriormente mataria a mãe dela. Já Emanuel dos Santos tentou suicídio quando tinha 21 anos. Ele não suportava a ideia de ter a mesma idade que sua mãe tinha quando morreu. Rosiane da Silva Gonçalves, de 35 anos, tem certeza de que precisa de atendimento psicológico, mas no momento não tem condições financeiras e tenta, nas palavras dela, “enganar” a dor da perda “trabalhando muito para não pensar tanto na morte da mãe”. 

Todas essas vítimas lidam com os traumas de serem órfãs do feminicídio. Emanuel largou a escola no terceiro ano do ensino médio. No povoado pequeno em que ele morava, era difícil carregar o estigma de ser o “filho da tragédia” como ficou sendo chamado após o feminicídio da mãe.

“Aos 16 anos, eu me tornei um adolescente rebelde e agressivo. Eu também tive que perdoar meu pai, porque, se eu não tivesse perdoado ele, eu teria morrido. Eu tentei me matar aos 21 anos, a idade era emblemática porque foi quando minha mãe morreu, e eu pensava que eu estava vivendo mais que ela. Até hoje, aos 26 anos, eu acho isso muito louco. Eu ainda tenho tanto para viver e já vivi mais que minha mãe”, analisa. Foi ao entrar para o curso de psicologia que ele começou a se entender e a se aceitar. “Os prejuízos que tudo isso me trouxe, se transformaram na minha motivação”, relata.

A defensora pública especializada na Defesa da Mulher de Uberlândia Bárbara Silveira Machado explica que o crime de feminicídio traz diversas consequências psicológicas para os órfãos a partir do momento em que eles começam a ser expostos à violência doméstica.

“Com muita frequência observamos crianças com transtornos psicológicos causados por presenciar constantemente as agressões sofridas pela mãe. Algumas vezes, crianças reproduzem a violência em suas relações sociais e outras vezes tornam-se apáticas, tímidas e introvertidas e não conseguem se relacionar com colegas ou professores, o que ocasiona prejuízos ao seu desenvolvimento escolar e interpessoal. Não é raro atendermos crianças que praticam automutilação, manifestam intenções suicidas ou outros tipos graves de transtornos de ansiedade como resposta à violência vivenciada em sua própria casa”, relata. 

Veja também:

+ Órfãos do feminicídio: filhos precisam reconstruir suas vidas após morte da mãe

+ Sem políticas públicas específicas, filhos do feminicídio ficam desamparados

Gabriela ficou bastante ansiosa após a morte da mãe e viu o irmão ficar mais introspectivo, porém, todas as vezes que fala sobre o feminicídio, ele “desaba”. O garoto tinha o pai como um herói e repentinamente descobriu que ele era um assassino. “Mesmo após seis anos, eu vejo os reflexos do que aconteceu com minha mãe em mim e no meu irmão. Dois anos depois de perder minha mãe, eu repeti de ano. Influenciou muito na minha concentração e na minha vontade de estudar. Eu ainda tenho muita dificuldade em confiar nas pessoas. Recentemente eu terminei um relacionamento porque eu não conseguia demonstrar meus sentimentos mais e tinha medo de ser traída, de haver mentira”, lembra a jovem. 

Rosiane conta que, no início, muita gente se aproximou dela, mas depois a vida das pessoas seguiu. “As pessoas que eram presentes ligavam para saber como eu estava, mas acaba que a vida dessas pessoas segue, tem outras prioridades, e nós acabamos caindo no esquecimento. Eu tenho tentado driblar o sentimento para não deixar minha mente vazia e pensando o tempo todo”, destacou.  

 

Culpa também atormenta os filhos do feminicídio 

A delegada de Polícia Civil responsável pelo Núcleo Especializado de Investigação do Feminicídio, Ingrid Estevam, ressaltou que muitos órfãos ainda lidam com a culpa de não terem conseguido evitar o crime contra a mãe. “Nos casos de feminicídio por resultado de violência doméstica, os filhos presenciaram inúmeras vezes as agressões contra a mãe. Muitas delas afirmam que se pudessem teriam evitado a morte da mãe. Elas ficam com esse sentimento de que poderiam ter defendido a mãe, e é difícil tirar essa culpa delas. Precisamos trabalhar para que eles entendam que a morte não foi ocasionada por uma falta de ação deles”, explica. 

O trabalho psicológico com as vítimas do feminicídio é visto pelo coordenador do serviço de psicologia da Universidade Fumec, Rafael Prosdocimi Bacelar, como um dos mais complexos. “A perda de uma mãe assassinada traz impactos muito profundos na vida dos filhos. Muitas vezes, essa mulher é assassinada pelo pai, pelo padrasto ou pelo companheiro da mãe. Precisamos fazer um trabalho complexo de psicoterapia associada a outro tratamento para reconstrução dessa história, do entendimento, além da falta da mãe”, explica. 

 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!