Risco com barragem

Vale quer tirar famílias de pousadas em Macacos e enviar para hotéis em BH

Mineradora justificou que pousadas não apresentaram documentação necessária, proprietários afirmam que não foram comunicados sobre prazos. Moradores têm que sair em 10 dias.

Por Manuel Marçal
Publicado em 11 de fevereiro de 2022 | 12:07
 
 
 
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Faz três anos que 36 famílias que moram no distrito São Sebastião das Águas Claras, mais conhecido como Macacos, em Nova Lima na região Metropolitana de Belo Horizonte, residem em pousadas custeadas pela Vale S.A. Isso porque os moradores tiveram que sair das suas casas por morarem em uma área de Zona de Autossalvamento da barragem da mineradora. E o sonho de viverem de maneira tranqüila parece não ter fim.

Os donos de pousadas afirmam que se sentiram surpresos ao receberem comunicado, nesta quinta, 10, da mineradora afirmando que a partir do dia 28 de fevereiro as pousadas seriam descredenciadas pela mineradora. 

As famílias terão que deixar os locais para se mudarem para hóteis em Belo Horizonte e Nova Lima, segundo moradores. Nesta sexta-feira a Vale agendou, por meio dos donos de pousada, que os moradores estivessem presente no estabelecimento para serem comunicados.

Segundo informe da Vale S.A. as pousadas não apresentaram as documentações necessárias. "A medida se fez necessária pois os estabelecimentos não cumpriram com obrigações legais e contratuais na prestação de serviços. Diferentes opções de hospedagem em Belo Horizonte e Nova Lima estão sendo oferecidas e as famílias poderão eleger aquela que melhor atenda a suas necessidades".

Segundo a reportagem de O Tempo apurou, para cada um dos 13 estabelecimentos foi uma justificativa diferente: adaptação de fossa séptica; passagem de calçamento; pendência de certidão negativa de débitos (CND) entre outros. 

Os moradores desalojados e donos de pousadas afirmam que estão surpresos com essa abordagem e justificativa da mineradora, porque consideram que Vale S.A encontrou uma desculpa, na avaliação deles, rasa para tirar as famílias das pousadas. Eles afirmam que a mineradora teria economia de 50% se as familias forem para hotéis. 

 "Eles falam que nos deram um prazo, mas isso nunca aconteceu. Estamos surpresos. Prazo, prazo mesmo só deram para os hospedas para sairem", afirma dona da pousada  Café Aquarela Sandra Teixeira de 72 anos.

Segundo conta, a mineradora justificou que ela não apresentou o documento AVCB do Corpo de Bombeiros. "Mas não me deram prazo e, agora vem nos descredenciando". Ela abriga no total 11 pessoas, entre elas, duas famílias.

A mineradora, por sua vez, acrescentou que os estabelecimentos foram notificados desde 2020. Os proprietários negam. "Durante três anos isso não teve relevância alguma. A Vale nos tirou do setor de turismo, para colocar os hóspedes nas pousadas. Viramos prestador de serviço deles e agora isso, por conta dessas pendências que antes não eram relevantes", conta Welligton Vaz Ferreira, 38, dono do Restaurante e Pousada Evolução da Gula.

Moradores estão inconformados 

A liberdade de ir e vir e de tentar viver de maneira digna em um lugar que lhes parece familiar é o maior apelo dos moradores que tiveram que deixar suas casas e que vivem, desde 2019, em pousadas e quartos de hotéis. 

"Que hotel vai aceitar cachorro, galinha, adubo, horta?", questiona Carlos Roberto de 37 anos. Ele mostra os bens pessoais como ferramentas e pontua que a saudade do antigo lar ainda dói. O vigilante mora em Macacos há 20 anos. "Meu menino saiu de casa, ele tinha 7 meses. Hoje ele tem quatro anos e não sabe onde é a casa dele". 

Antes de chegar à pousada Café Aquarela, Carlos Roberto já passou por cinco outros lugares com a esposa de 34 e a sogra de 63 anos. "Minha sogra tem dificuldade extrema de locomoção e a Vale fica nós jogando pra lá e pra cá" afirma Roberto.

"Hotel vai ter espaço para crianças brincarem pra lá e pra cá, não vai?!. Daqui só pra casa própria, chega de ficar nos jogando para lá e pra cá". O homem destaca que às famílias querem ser indelizadas, porque não aguentam mais essa situação.

"Se o hóspede está se sentindo bem num lugar. Então, deixa ele lá. Não dá para entender", conclui.

Nascida e criada em Macacos, Rosângela da Silva Rodrigues, 50, mora com oito pessoas da família na pousada Restaurante Pousada Evolução da Gula a cerca de três anos.  Ela recebeu a notificação pessoalmente da Vale S.A de que teria que deixar a pousada em dez dias para mudar para hotéis Belo Horizonte ou Nova Lima.  

“Já estamos tendo problema, porque não estamos ligando e não estamos conseguindo reservar estes hotéis”, criticou. “Falaram: ‘te ofereço casa, daqui três meses, nós vamos olhar, tentar reformar e ver se é do agrado da senhora’. Mas eu falei: ‘não quero ir para hotel’, então viraram e me disseram ‘mora na casa da sua mãe’. Veja: minha mãe está doente, eu vou levar oito pessoas para a casa dela e criar transtornos com ela doente?” . A mãe de Rosângela tem 87 anos.

Rosângela não aguenta mais essa situação. “A sensação é de um desgaste imenso, já passei por isso há três anos e querem fazer isso de novo com a minha família. E eu tenho três netos, sendo um deles é especial, olha o transtorno”, reclama. “Tudo meu é aqui em Macacos: escola das crianças, médico. Trabalho em uma lavanderia. Se não revogarem essa situação toda, eu vou ter que ir para hotel”. 

Quando teve que deixar a casa, morou em três hotéis em Belo Horizonte. Depois, veio a possibilidade das pousadas em Macacos. Ela conta que não quis voltar num primeiro momento porque tinha medo das barragens. Rosângela mudou de ideia e voltou para o distrito de Nova Lima, por causa da escola dos netos. “Para não pegar BR todo santo dia com meus netos, preferi vir morar em pousada”, destaca. 

Morte do comércio local

O setor de comércio e serviço em Macacos sofre desde 2019 com a fuga de turistas. Varios estabelecimento e pousadas tiveram que fechar às portas, porque estavam na trajetória de perigo caso uma barragem de rejeitos se rompesse. 

Caso às 36 famílias deixem o distrito, a movimentação do comércio local pode ser ainda mais prejudicada. 

"Aqui já tá morto, só falta enterrar. Se a Vale tirar todo mundo daqui, aí mesmo que acaba o comércio da região, porque turista aqui não está tendo mais", afirma Sandra Teixeira. 

VEJA A LISTA DE HOTÉIS 

Hotel Max Savassi

E-Suites Luxemburgo (Ramada)

Hilton Gardenn Inn Belo Horizonte

Hotel BH Raja

Mercure BH Savassi

Mercure BH Lourdes

BH Plaza

Plemonte Hotel (Nova Lima)

Mercure Vila da Serra (Nova Lima)

Caesar Business (Nova Lima)

SUPOSTO CASO DE RACHADINHA ENTRE MORADORES E INQUILINOS  

A reportagem de O TEMPO ouviu de fontes anônimas que um suposto caso de rachadinha ainda estaria ocorrendo entre inquilinos e donos de pousadas. No caso, os proprietários estariam repassando parte da quantia recebida pela Vale S.A para que os inquilinos pudessem se alimentar da forma que quisessem.  

Diante disso, na avaliação de alguns moradores, para acabar com isso, a mineradora resolveu descredenciar as pousadas usando como justificativa a falta de documentação. 

Procurada a Polícia Civil, informou que as investigações encontram-se em andamento. “Neste momento, nenhuma informação será repassada para preservar os trabalhos em curso”. 

Por sua vez, o Ministério Público de Minas Gerais disse que está acompanhando a situação sobre a transferência de hóspede de pousadas de Macados. Em relação ao suposto caso de 'rachadinha', o órgão respondeu que existe “inquérito visando a apuração dos fatos.  

Leia na íntegra o posicionamento da mineradora:

" A Vale iniciou, no dia 8 de fevereiro, a realocação de 36 famílias que atualmente estão hospedadas em pousadas localizadas no distrito de Macacos, em Nova Lima. A medida se fez necessária pois os estabelecimentos não cumpriram com obrigações legais e contratuais na prestação de serviços. Diferentes opções de hospedagem em Belo Horizonte e Nova Lima estão sendo oferecidas e as famílias poderão eleger aquela que melhor atenda a suas necessidades.

Antes da realocação, a Vale notificou as pousadas sobre a necessidade de regularização e ofereceu prazo para as adequações. A empresa também disponibilizou outras opções de hospedagem para as famílias. Para aquelas com residência de origem localizada na Zona de Autossalvamento (ZAS) da barragem B3/B4  foram oferecidas, ainda, moradias temporárias.

Após a realocação, a negociação das moradias temporárias seguirá sendo realizada junto às famílias da ZAS e elas se mudarão quando encontrarem um imóvel que considerem adequado". 

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Matéria atualizada às 16h17 com retornos do MP e Polícia Civil de Minas Gerais. 

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