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Vítimas do crack e também de preconceito e abusos sexuais

Presença feminina nas ‘cracolândias’ cresce e chama a atenção de especialistas e gestores públicos

Por Luciene Câmara
Publicado em 02 de dezembro de 2014 | 04:00
 
 
 
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A barriga de sete meses de gravidez chama a atenção em um grupo predominantemente masculino de usuários de crack em uma calçada da Pedreira Prado Lopes, na região Noroeste de Belo Horizonte. Iara*, 20, fuma com outros colegas e não quer falar de sua dependência nem do filho que espera. “Minha vida eu só abro com Deus”, diz a jovem. Ela não é a única mulher nem a única gestante do local. Mas é o retrato das personagens cada vez mais comumente vistas em pontos de uso de crack de todo o Brasil. No segundo dia de sua série de reportagens, O TEMPO mostra que o número de mulheres envolvidas com o crack é crescente, no entanto a rede de atendimento a elas não acompanha esse avanço.

Dados da Pesquisa Nacional sobre Uso de Crack, de 2013, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), feita a pedido da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), apontam que elas representam 21,32% dos consumidores, contra 78,68% de homens. E o próprio coordenador do estudo, Francisco Bastos, observa uma mudança nesse perfil.

“No Rio, por exemplo, percebemos não só um aumento da população feminina no crack, como o engajamento delas no tráfico, em posições baixas da hierarquia. Em uma abordagem policial, o homem quase sempre é revistado, já a mulher é menos notada e vem sendo usada por isso”, explica. Em geral, quem ocupa esse cargo no tráfico não é remunerado em dinheiro, mas sim em pedras de crack ou outros entorpecentes.

Integrantes da ONG Defesa Social, que trabalha com usuários da capital, também observam que o número de mulheres tem se multiplicado nas cenas de uso, popularmente chamadas de “cracolândias”. “Hoje, elas já representam mais de 30% dos usuários. Cada dia recebo novos pedidos de ajuda de familiares”, alerta o presidente da organização, Robert William.

Riscos. Para estudiosos, o envolvimento de mulheres com o uso de crack, por si só, já é mais complexo que no caso dos homens por elas terem maior vulnerabilidade. “Elas são abusadas (sexualmente), sofrem violência, se prostituem e, no fogo cruzado do tráfico, geralmente são elas que morrem”, justifica Francisco Inácio Bastos.

Robert William, que acompanha casos há anos, acrescenta que muitas mulheres se envolvem emocionalmente com outros dependentes, assumem a droga do parceiro perante a polícia ou se afundam ainda mais no vício diante de decepções afetivas, como a perda da guarda dos filhos.

O subsecretário de Políticas sobre Drogas de Minas Gerais, Cloves Benevides, diz ainda que as mulheres demoram mais a buscar tratamento. “Elas procuram menos porque têm vínculos compensatórios por muito tempo; algumas usam a droga, mas estão amamentando e ainda mantêm uma percepção de cuidado com filho. Por isso, é mais difícil pedir ajuda porque ela é quem cuida da família”, conclui.

* nome fictício

Para os bebês
Prejuízos.
O impacto do crack na gestação é objeto de estudos nas últimas três décadas, mas ainda há controvérsias. Os bebês tendem a nascer prematuros e apresentam sintomas de abstinência.

União faz encontro para discutir destino de bebês
Da barriga da mãe direto para o abrigo. Esse tem sido o destino de bebês de mães usuárias de crack. De janeiro a outubro, dos 232 novos acolhimentos de crianças de 0 a 2 anos de Belo Horizonte, 158 (68%) foram em decorrência da droga. Nesta quarta, órgãos federais, estaduais e municipais se reúnem na capital para discutir o assunto.

O encontro é promovido pela Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, em virtude da recomendação do Ministério Público (MPMG), de meados deste ano, que O TEMPO revelou com exclusividade. A promotoria recomendou que unidades de saúde acionem a Vara da Infância e da Juventude sobre casos de gestantes usuárias de drogas.
A medida, de acordo com o MPMG, é para evitar que bebês sejam abandonados em hospitais. No entanto, conselhos municipais e de saúde da mulher já se posicionaram contra. Nesta segunda, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente discutiu o assunto.

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