Alegria retoma em cores e tons

Volta do Carnaval de BH tem ar de festa como o da folia pós-gripe espanhola

As ruas e avenidas de Belo Horizonte ganham novamente o colorido das fantasias e os sons dos instrumentos após dois anos sem folia

Por Rayllan Oliveira
Publicado em 17 de fevereiro de 2023 | 06:00
 
 
 
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O colorido das fantasias e os sons dos instrumentos musicais voltam a ocupar um espaço antes tomado pelo cinza do vazio das ruas e avenidas, e de um silêncio ensurdecedor dos dois últimos Carnavais. A folia de 2023 é a primeira após um período de medo, solidão e de despedidas, sentimentos estes provocados pela pandemia da Covid-19, que em Belo Horizonte matou 8.384 pessoas e impediu a realização do Carnaval em 2021 e 2022. Com a queda no número de casos e de óbitos, foliões devolvem à cidade o estado de felicidade. Alegria próxima a vivida pelos “pierrots e colombinas” em 1919. Eles brindaram o fim da gripe espanhola, que também dizimou uma parcela da população brasileira, e da crise econômica provocada pela Primeira Guerra Mundial, debaixo de um “sol folião e amigo das causas joviais”, como relatou um jornal da época.   

“É ótimo ter o Carnaval de volta. Ver as pessoas de mãos dadas, sendo amigas e brincando. É para mim um agito muito bom. É a sociedade voltada novamente para o lado positivo da vida”, expressa o servidor público Carlos Porfírio, de 65 anos, um entusiasta da folia. A paixão pelo Carnaval é uma herança que herdou dos seus pais, nascidos na década de 1910, no interior de Minas Gerais. O casal se mudou para a capital mineira nos anos de 1930, onde reforçou os laços com a festa, antes restrita aos bailes e aos corsos carnavalescos. “Meus pais sempre tiveram boa relação com a cultura e a questão social, eles até se conheceram por causa disso. É algo que já está arraigado neles, essa paixão pelas festas populares”, completa. 

Assim como o pai, Carlos Porfírio também irá vivenciar neste ano uma experiência singular: um Carnaval após uma pandemia. A folia de 2023 se identifica com a que ocorreu no ano de 1919, quando centenas de foliões tomaram as ruas da capital de Minas para celebrar a festa após a crise sanitária provocada pela gripe espanhola. Os poucos registros históricos daquele período indicam que o Carnaval daquele ano foi uma oportunidade de reencontros e de êxtase. “O sol que sorria no azul claro não era, sem dúvida, um sol de quarta-feira de cinzas, mas um sol folião e amigo das causas joviais”, descreve o cronista do jornal Diário de Minas, publicado no dia 6 de março de 1919. O cronista reforça seu contentamento com o que foi a festa a partir do trecho: “E o sol, por uma fresta, gritou lhes, para logo, num convite guerreiro: Evohé! Evohé!”. A expressão utilizada por ele demonstra entusiasmo e exaltação, como se estivesse em um rito de felicidade.

A experiência do cronista não está isolada neste contexto de celebrações. Em outra página, o jornal Diário de Minas, também publicado no dia 6 de março daquele ano, narra que a festa ganhou proporções maiores que as anteriores. “Deve-se notar que o movimento popular, que nos anos anteriores sempre se limitou às ruas Bahia e Caetés, estendeu-se, este ano, pela avenida Afonso Penna, que, espaçosa como é e bem iluminada como estava, tinha um belo aspecto despertando a melhor impressão”, informa a reportagem que estampou a capa da edição daquele dia. A manifestação popular contou com corsos carnavalescos (carros caracterizados) e bailes que agitaram a cidade durante as noites dos dias de folia. “Pode-se dizer, enfim, que foi um Carnaval de deixar saudades em muita gente”, completa a matéria. 

O Carnaval de 1919 foi para a sociedade daquele período uma oportunidade de celebração do fim da gripe espanhola e também da crise econômica, impulsionada pela Primeira Guerra Mundial, que perdurou entre os anos de 1914 e 1918. Estima-se que, em Belo Horizonte, 282 pessoas morreram por causa da doença, que ficou conhecida como “gripe bailarina”, em razão da velocidade de mutações de seu agente causador. “Era uma cidade muito nova, com uma população reduzida. Isso fez com que a realidade da doença na cidade tenha sido muito diferente da de outras capitais como o Rio de Janeiro, Recife, Salvador e São Paulo”, explica a professora, mestre e doutora em história Anny Torres Silveira. À época, a capital mineira, de apenas 21 anos, tinha cerca de 45 mil habitantes. Além da população reduzida, uma outra justificativa para que a cidade não tenha sofrido tanto com a doença foi a de que a jovem capital era uma cidade salubre, construída de acordo com os conceitos modernos de higiene urbana da época, que foram estabelecidos por engenheiros e sanitaristas de competência reconhecida nacionalmente. 

“Tinham todos esses fatores. Mas quem estuda pandemia, por exemplo, sabe que esses números são mascarados por outras doenças. Além disso, tem aquelas pessoas que não procuraram por atendimentos médicos, que faleceram fora dos hospitais e não tiveram os óbitos notificados”, explica a especialista, responsável por desenvolver pesquisas nas áreas de histórias das doenças, das ciências, saúde e patrimônio. Anny Silveira, que estudou sobre a gripe espanhola no Brasil e em Belo Horizonte, avalia que a doença pode ter causado um impacto maior ao que se tem registrado e foi informado, por exemplo, pelos jornais da época, como o Diário de Minas e o PRM, pertencente ao Partido Republicano Mineiro, sigla pela qual participava o governador João Pinheiro da Silva (1914-1918). “Tem uma notícia da época em que o cronista questionava um jornal que dizia ter trezentas pessoas contaminadas. Ele afirmava que era só fazer um passeio nos bairros mais distantes da cidade para perceber que isso era muito maior, eram pelo menos 5.000 pessoas. A partir desses relatos, tem uma dimensão do que foi esse momento, esses relatos precisam ser considerados”, relata. 

A literatura indica que a gripe espanhola chegou em Belo Horizonte no dia 21 de outubro de 1918. A doença, que até então havia sido diagnosticada somente em cidades portuárias, foi trazida pelos rios e ferrovias. Assim como no pandemia da Covid-19, a crise sanitária provocada pela gripe espanhola implicou na abertura de hospitais provisórios como também no fechamento das lojas, interrupção das atividades escolares, rituais religiosos e romarias ao cemitério do Bonfim, localizado no bairro de mesmo nome, na região Noroeste da capital. As medidas, adotadas pelo Governo, eram preventivas e tinham como objetivo evitar a propagação do vírus que se espalhava pelas pequenas gotas expelidas ao falar, tossir e espirrar. “Muitas das ações sanitárias que foram adotadas naquela época foram utilizadas nestes últimos dois anos, como o distanciamento social”, explica o médico infectologista e presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, Adelino de Melo Freire Júnior.

Embora os primeiros casos no país tenham sido confirmados somente no segundo semestre daquele ano, época posterior ao Carnaval, a sociedade já se mostrava temerosa com a doença, que fazia vítimas em outros continentes, principalmente na Europa, palco dos conflitos da Primeira Guerra Mundial. O jornal Diário de Minas do dia 10 de fevereiro de 1918 reportou o medo e a preocupação das pessoas com a folia daquele ano. “Ao contrário dos outros anos, chegou agora sem o ruído ensurdecedor das zabumbas, sem os corsos e as batalhas de rodos e confetes (...). Parece que uma sombra de luto, vinda de longe, de além mar, da Europa conflagrada se projeta sobre todas as almas brasileiras, para que assim se abstenham do seu divertimento predileto”, descreveu. Apesar do medo, a festa ocorreu, ainda que de forma tímida, em casas noturnas da cidade. A única restrição, conforme publicado pelo jornal, foram impostas pelo governo ao restringir manifestações políticas e contrárias à Polícia Militar.

Os jornais também estampavam diversos anúncios de medicamentos que prometiam a cura de algumas doenças e de alguns fortificantes, que atuavam diretamente no sistema imunológico. “Naquele período não tinha um antiviral, as condições sanitárias também eram ruins. Então o que a gente sabe é que as pessoas ofereciam tratamentos infalíveis, que tinham misturas de ervas, tabacos e outros. Eram medicamentos até mesmo para limpar o ar da casa, nada que houvesse comprovação científica”, relata o médico infectologista Adelino Júnior. A população, naquele período, enfrentou a alta dos preços como também a falta de alguns produtos básicos. 

Para a pesquisadora Anny Torres Silveira, as adversidades deste período endossaram uma discussão do movimento sanitarista, do decênio de 1910. Na ocasião, médicos apontavam que muitos dos problemas de saúde do país eram consequências da falta de infraestrutura. Esse problema é o que justificava, por exemplo, o atraso no desenvolvimento do Brasil. “A gripe espanhola não é algo que tem um impacto de causa e consequência. Só que essa essa experiência consegue aprofundar um debate que já vinha acontecendo, que é o do Estado voltar para a saúde pública”, explica a professora que aponta como um dos legados a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, em janeiro de 2020.

O servidor público Carlos Porfírio acredita que, assim como foi no passado, com os seus pais, o Carnaval 2023 deixará uma herança para a sociedade de Belo Horizonte. A crença de Porfírio vai além dos cuidados com a higienização, que aponta o convívio social e as novas formas de folia como um importante marco dessa época. “Eu acho que esse modelo de Carnaval atual deve durar muito tempo ainda. É algo que tende a se aperfeiçoar e a gente precisa aprender a conviver. Isso é algo muito  positivo, é importante ver muita gente na rua e brincando. Eu gosto muito, vejo como uma coisa boa para a cidade”, completa.

Pandemia e a folia em 2023

O período da folia em 2023 teve início no dia 4 de fevereiro. A celebração do Carnaval em Belo Horizonte está programada para se estender até o próximo dia 26. A cidade espera receber cerca de 5 milhões de foliões durante este período, números que projetam a festa como a maior de toda a história da capital mineira. O Carnaval ocorre no momento em que a cidade considera a pandemia controlada, com 1.171 casos e 8 óbitos confirmados neste ano, conforme o último boletim epidemiológico, publicado no dia 8 de fevereiro.

“A vida já tomou um ar de normalidade e as pessoas estão com um comportamento muito mais leve, encaram a Covid, por exemplo, de uma forma muito diferente de um ou dois anos atrás”, explica o médico infectologista e presidente a Sociedade Mineira de Infectologia, Adelino de Melo Freire Júnior. Para ele, esse comportamento é compreensível e só ocorre por causa de uma parcela significativa da população vacinada. “As pessoas sabem que, por causa disso, o risco de morrer pela doença é muito menor”, justifica.

No entanto, o especialista se mantém cauteloso quanto à realização do Carnaval neste ano. Para Adelino, as novas variantes e também as pessoas que não foram completamente vacinadas oferecem riscos e são os principais motivos de preocupação. “O vírus continua circulando e os números ainda não são desprezíveis. Por causa dessas novas variantes, a gente projeta um aumento da transmissão e de casos nos próximos meses”, aponta. Por causa disso, o infectologista orienta que os foliões adotem medidas preventivas durante a festa deste ano. “É importante ter cuidado, evitar ambientes fechados e cheios. As pessoas mais idosas e que possuem alguma comorbidade, principalmente”, completa.

 

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