Ele é vermelho e solta fogo pelas ventas. Ela é azul e usa óculos de aro arredondado. Roxo, seus olhos estão sempre esbugalhados. Verde, ela não esconde o ar de superioridade, enquanto sua amiga costuma ter os braços levantados para o alto.
Foi assim, de forma lúdica e descontraída, que a animação “Divertida Mente”, cuja continuação está prevista para estrear no dia 14 de junho no Brasil, abordou sentimentos como raiva, tristeza, medo, nojinho e alegria, atingindo crianças – e, por que não dizer, adultos de todas as idades – no mundo inteiro.
Essa também é a premissa da colônia de férias “Emocioverso”, que acontece nesta semana, no bairro Barroca, região Oeste de Belo Horizonte, voltada para crianças de três a oito anos. “Essa é a fase de desenvolvimento da criança, quando ela começa a ter certa autonomia e consegue identificar as emoções, não só as que recebe pelo núcleo familiar, mas do próprio meio em que está inserida”, explica a psicóloga Ana Luísa Bolívar.
Com duas horas e meia de atividade por dia, a colônia oferece oficinas que fundamentarão um relatório entregue aos pais com as observações sobre cada criança, em que elas são convidadas a viajar para os planetas do medo, da alegria, da raiva, da tristeza e do amor.
Sem hierarquia
Ana Luísa deixa claro que não existe hierarquia quando se trata de emoções. “Todas são importantes, não há emoção boa ou ruim. Tem aquelas que nos desagradam ou com as quais ainda não sabemos lidar da forma mais saudável, mas vão existir para sempre, e a criança, como um indivíduo no mundo, também precisa aprender a elaborá-las”, sustenta.
Segundo a especialista, a capacidade de reconhecer as próprias emoções tende a se transformar em um benefício tanto para as nuances típicas da adolescência, propiciando que a pessoa não se deixe abalar diante dos desafios de um momento de insegurança e transição, quanto no decorrer da vida adulta.
“As gerações anteriores não tinham o hábito de trabalhar o emocional, e, como resultado, temos adultos desregulados, que nem sabem identificar o que estão sentindo”, aponta, em referência à necessidade de autoconhecimento em todas as esferas do comportamento humano.
Ela reforça que é fundamental esse processo se iniciar na infância, pois é quando a personalidade está se formando. Traumas adquiridos nesse período podem acompanhar uma pessoa durante a vida toda e nunca se resolverem plenamente, de maneira satisfatória.
“Ainda quando somos bebês percebemos o afeto, ou a falta dele, vindo do pai e da mãe. Quanto mais cedo a pessoa lidar de maneira construtiva com suas emoções, mais assertiva ela se torna. A infância é o chão que a gente pisa, tudo que acontece durante essa fase da vida fica guardado na nossa memória afetiva”, sublinha Ana Luísa, ressoando uma sentença do poeta mato-grossense Nicolas Behr: “A infância é a camada fértil da vida”.
Universo lúdico
Outro ponto que a psicóloga destaca é a abordagem, por meio de jogos, desenhos, musicoterapia e meditação. “A linguagem para trabalhar com crianças precisa ser lúdica, os adultos devem estar dispostos a entrar no universo delas, para que elas se sintam reconhecidas e acolhidas como sujeitos no mundo”, observa.
Como exemplo, a profissional conta que, no “dia da raiva”, as crianças serão orientadas a produzir uma “garrafa da calma”, para que habilidades como paciência, criatividade e expressividade sejam estimuladas. Nesse ponto, ela sublinha que “controlar” não é a melhor palavra para definir nossa relação com os sentimentos, pois poderia fomentar a ideia de represamento ou repressão de sensações que precisam ser liberadas, porém de modo consciente e saudável para si e os outros à sua volta.
“O essencial é aprender a elaborar e lidar com as emoções. Externalizar não é o problema, a questão é a forma. Encontrar meios que minorem os riscos e não façam a pessoa se sentir mal depois da tensão. Em vez de gritar, chorar, bater nos irmãos, nos colegas, oferecemos possibilidades para que a criança consiga respirar, se acalmar, se retirar do local, encarando o sentimento de frustração de outro jeito, se conscientizando. Isso vale também para os adultos”, salienta.
Entender “como as emoções atuam no corpo e saber nomeá-las” são, na visão da psicóloga, o segredo para que a impulsividade não se torne uma constante, um padrão de comportamento com alto potencial de gerar um adulto infeliz e uma criança irritada.
Tempos modernos
Uma demolição repentina na cabine de controle anuncia a chegada de uma nova emoção ao universo de “Divertida Mente 2”. Laranja e com um cabelo arrepiado, a Ansiedade se junta ao Medo, à Raiva, à Alegria, ao Nojinho e à Tristeza. A sinopse do novo filme da Disney dá uma pista do que vem por aí e se conecta aos tempos modernos.
“Crianças de três anos já demonstram ansiedade, querem ser o centro das atenções, fazem só o que querem e não têm paciência”, alerta a psicóloga Ana Luísa Bolívar. De acordo com a especialista, esse comportamento recorrente está intimamente ligado ao contexto de uma sociedade cada vez mais conectada e dispersiva, em que as telas tomaram o lugar antes reservado a brincadeiras interativas, que não monopolizavam a atenção da criança, mas se estendiam ao contato com o outro. A configuração das famílias também mudou. “As famílias têm cada vez menos filhos, irmãos e primos. A infância de hoje não é a mesma de dez anos atrás”, constata a psicóloga.
Crianças que se tornam agressivas, mordem os coleguinhas, agridem os pais e até regridem comportamentalmente, transformando a carência em necessidade constante de colo, são sinais claros dessa ansiedade precoce. Diante de tal cenário, o papel dos pais é decisivo. “A rotina da criança se tornou muito ocupada, com uma série de compromissos que substituem a vivência familiar. A criança precisa de tempo livre e de se sentir ouvida, importante, incorporada às atividades do pai e da mãe, em vez de ser deixada de lado. A colônia de férias pode auxiliar a tirar a criança da bolha das telas, com novas experiências e uma convivência sadia com outras crianças”, assinala.
Superar o estigma em torno da terapia, ainda mais quando se trata dos pequenos, também deve ser um compromisso das gerações contemporâneas. “A discussão sobre saúde mental ficou um pouco mais acessível após a pandemia de Covid-19. Percebemos como esse tema afeta o nosso cotidiano. E, no caso da criança, não é necessário haver um ‘problema’ do ponto de vista objetivo para que ela faça terapia, porque essa experiência vai contribuir para seu desenvolvimento e vai permitir à criança se expressar, ter um lugar de fala e aprender que existe esse espaço para repassar sua angústia, como uma precaução para se tornar um adulto saudável”, arremata.