Fortaleza. A câmera de “Petra” é uma câmera que investiga, assim como sua protagonista. Ela se movimenta e se aproxima de seus personagens, só chegando ao enquadramento preciso quando o espectador entende o que realmente se passa na cena. Mas o interessante é que quase nunca ela para aí, continuando a seguir para fora do quadro – assim como nós, que muitas vezes nos focamos tanto na resposta que estamos buscando, sem perceber que a pergunta que deveríamos estar fazendo é outra.
Essa é a essência do longa do diretor catalão Jaime Rosales. O filme acompanha a busca da pintora Petra (Bárbara Lennie) que, após a morte da mãe, parte em busca da identidade do pai, que ela acredita ser o artista plástico Jaume (Joan Botey). Na sua investigação, porém, a protagonista descobre que ele é um homem cruel e perverso, e acaba se envolvendo com o filho (Lucas, vivido por Alex Brendemühl) e a esposa (Marisa, vivida por Marisa Paredes) dele.
A trama é um misto de tragédia e melodrama, numa receita que combina pitadas de Eça de Queirós e de Pedro Almodóvar. Rosales reconhece esse certo caráter literário da história, dividindo o longa em sete capítulos – só que subverte seu tom clássico ao invertê-los de ordem.
“Petra” começa com o segundo e o terceiro, para só depois voltar ao primeiro, saltar para o quarto, então o sexto, voltar ao quinto e encerrar no sétimo. Para além dessa quebra da linearidade, porém, o mais interessante desse dispositivo é que cada um dos capítulos é introduzido por um título que revela exatamente a grande surpresa que ele vai introduzir. E ao dar esse spoiler, Rosales tira a atenção do espectador da reviravolta típica do melodrama, e a desvia para a forma como ela vai ser contada.
Porque esse controle que o diretor mantém o tempo todo da narrativa é o grande destaque do filme. É ele que transforma uma trama que poderia ser novelesca em algo essencialmente cinematográfico.
Isso fica claro no fato de que o primeiro close do rosto da ótima Bárbara Lennie (o novo grande nome do cinema espanhol, visto recentemente no Brasil em “Uma Questão de Família”) só acontece no capítulo 1 (o terceiro apresentado) porque é só nele que o espectador conhece quem Petra realmente é – e é esse uso da linguagem audiovisual para contar a história que interessa a Rosales, mais do que suas reviravoltas.
Essa excelência formal do cineasta escorrega, no entanto, no ato final. A ótima elipse do salto do quarto para o sexto capítulo é diminuída quando ele decide retornar ao quinto para mostrar algo que o público já tinha entendido. São 15 minutos que poderiam ser enxugados da produção, e que só são salvos pelas boas atuações e pela química de Lennie e Brendemühl. E assim como eles, o restante do elenco, com destaque para Paredes e Botey, são os grandes responsáveis por dar vida e emoção ao exercício formal de Rosales – especialmente no capítulo final, quando a decisão que o diretor faz entre luz e sombra pode dividir opiniões.
E no fim, “Petra” é um filme exatamente sobre vida – e morte. O longa é uma história sobre como a vida é uma verdade que pode doer, mas a mentira é muito pior – é uma maldição que mata. São temas que você já pode ter visto em outras produções, mas raramente com tamanha elegância narrativa e competência artística.
Parábola com cheiro de maresia
Quarto longa do cearense Petrus Cariry, “O Barco” adapta um conto homônimo de Carlos Emílio Corrêa Lima de apenas três páginas. E ao encarar o desafio de leva-las para a tela, o diretor tem êxito em transformá-las em um espetáculo visual e sonoro puramente cinematográfico, mas falha em justificá-las como um longa, nunca ampliando suficientemente sua interessante premissa.
Ela gira em torno de A (Rômulo Braga, ator muito conhecido do público mineiro), primogênito de Esmerina (Veronica Cavalcanti), moradora de uma vila de pescadores que teve 26 filhos e batizou cada um deles com uma letra do alfabeto. Com a chegada da sedutora Ana (Samya de Lavor), o jovem passa a questionar a insistência dos pais em permanecer na vila e a sonhar em desbravar o mar.
Em seus aspectos visuais e sonoros, “O Barco” é exemplar. Filmado em tons escuros e com um timbre metálico, o mar é um personagem do filme, perigoso e sedutor ao mesmo tempo – paradoxo sintetizado no chamado da sereia de Ana. E a vila, encastelada pelas falésias da praia das Fontes, com suas cabanas de pés-direitos baixos e a rede que os personagens estão sempre costurando, é uma prisão segura, mas decrépita, representada pela figura cansada de Esmerina.
Petrus alicerça seu longa nesse triângulo formado pelas duas e completado por A. O problema é que o impasse do protagonista entre se aventurar no mar e permanecer na vila é algo que, dramaturgicamente, justificaria no máximo um curta. E considerando que a premissa da história inclua os 26 filhos de Esmerina, incomoda o fato de que o único que o público realmente conhece é A. Os outros mal aparecem na tela.
Se Veronica Cavalcanti, que é apenas nove anos mais velha que Rômulo Braga, confere o peso e a experiência dos anos a Esmerina, a Ana vivida por Samya de Lavor causa um certo desconforto. Isso porque sua Sherazade – que seduz os homens da vila com seus contos de erotismo e violência sexual – é filmada do ponto de vista de A, com um olhar de desejo masculino, acentuado pela seminudez da atriz. As cenas lembram um pouco o ótimo “A Criada”, só que Chan-wook Park obteve um resultado bem mais sucedido dramaturgicamente, sem precisar expor o corpo de sua atriz.
O repórter viajou a convite do festival