Há empreitadas que provam que aspectos que a princípio poderiam parecer inconciliáveis - como luto e humor - podem, sim, se entrelaçar, alcançando excelentes resultados. É o que acontece na série britânica "After Life", cuja terceira temporada acaba de ser disponibilizada na Netflix, com seis episódios - detalhe, explicitando que é, de fato, o fim, mesmo que deixando um gostinho de "queríamos mais".
Escrito e dirigido por Rick Gervais, "After Life" gira em torno de um repórter - Tony Johnson - que vive em uma pequena cidade na Inglaterra, Tambury. Atua no jornal local (A Gazeta de Tambury) construindo matérias a partir de casos por vezes casuais, por vezes bizarros. Mais importante: vive um luto profundo: sua cara-metade, Lisa (Kerry Godliman), faleceu há pouco, após lutar bravamente contra um câncer. Ele não se conforma de jeito algum e, fora do trabalho, passa os dias taciturno, assistindo, no computador, a registros em vídeos caseiros dos bons momentos que compartilharam. Através deles, aliás, é possível perceber a sintonia que pautava a união dos dois, transcorrida em meio a risadas sem fim.
A segunda temporada tem início retomando algumas linhas exploradas nas anteriores, como a amizade de Tony com Emma (Ashley Jensen), funcionária da casa de repouso Folhas de Outono, onde o pai do jornalista - Ray (David Bradley) vivia. Já no cemitério, ele segue tendo suas (algo tristes, mas maravilhosas) conversas com Anne Pearson, vivida por Penelope Wilton (cujo talento vem sendo apreciado pelos brasileiros em produções como o filme "O Exótico Hotel Marigold" ou a série "Downton Abbey")
Na redação capitaneada por Matt Brande (Tom Basden), cunhado de Tony; há uma nova estagiária, Colleen (vivida por Kath Hughes, uma vez que a atriz Mandeep Dhillon, que fazia Sandy, não pode participar desta última parte) que à procura de uma casa para morar. O fotógrafo Lenny (Tony Way), que forma uma dupla inseparável com Tony, segue os preparativos para o casamento com June (Jo Hartley), enquanto seu filho James (Ethan Lawrence) tenta se dar bem no teatro, não obstante seu físico não o credenciar a papeis de galã. Bath (Diane Morgan) segue desastrosamente tentando encontrar sua cara-metade. O carteiro Pat (Joe Wilkinson) passa a questionar a profissão da namorada, Roxy (Roisin Conaty, que não aparece nesta temporada) por sentir ciúmes do que ela supostamente com outros homens.
Nas visitas ao Folhas de Outono, Tony, acredite, arruma inclusive um "novo pai", com direito a cenas que vão suscitar ternura em quem viveu (vive) situações assim, em casa. Já como repórter, entrevista tipos como um casal que promove suingues, os idosos que se reencontram após décadas e passam a formar um par romântico ou a senhorinha que, na santa ingenuidade, franqueou a entrada da casa a um ladrão, dando-lhe todas as coordenadas para que o que juntou em vida fosse roubando, supondo que o visitante fosse um bombeiro.
Bem, tirando o casal que promove suingues, um caminho interessante tomado por "After Life" é o de criar uma trama ancorada em pessoas comum. Potencialmente reais. Não raro, perdedores, com seus traumas e infelicidades. Praticamente todos ali são pessoas ordinárias, que vivem vidas ordinárias, trabalham em lugares ordinários. Não há carros luxuosos, paisagens de fazer o queixo cair, praias paradisíacas, casas que parecem saídas das páginas de revistas de decoração e restaurantes com estrelas Michelin.
E em meio a esse cenário, há idosos abandonados pelas famílias, repórteres que se contentaram em passar a vida fazendo matérias que nunca vão ter grande repercussão mesmo, atores frustrados, escritores sem talento, acumuladores, filho dependente de mãe (que, por sua vez, é solo), os valentões fanfarrões da cidade pequena (ok, eles existem também nas ditas cidades grandes)..... E muita, muita, muita solidão. Tudo isso, permeado pelo humor britânico, que arranca risadas por meio de falas ácidas, amargas, por vezes cruéis. Mas que também dizem muitas verdades. Na pele do protagonista, Rick Gervais está nada menos que perfeito. Seu olhar é um de seus principais trunfos - e revela tanto, mas tanto, as nuances e sentimentos do personagem. Demais atores estão longe de ficar para trás - ao contrário, todos se esmeram e fazem bonito.
Para não dizer que tudo é perfeito, há diálogos politicamente incorretos que poderiam ser limados sem qualquer prejuízo - o humor ao qual a série se alinha não precisa disso. Não bastasse, o personagem traz uma carga de escatologia e dispara comentários de cunho sexual que, não raro, constrangem.
Mas são as ponderações sobre a vida e a sua finitude, sobre tempos que não voltam mais, sobre o o aproveitar cada momento, pois nenhum se repetirá, que mais se sobressaem nesta série tão humana, e que vai deixar saudades... Ponderações tão certeiras, que calam fundo. Tão argutas que deixam um nó na garganta e fazem engolir seco. Para muitos, certamente este desenlace fará brotar lágrimas aos olhos. C'est la vie.
Serviço
'After Life - Vocês Vão Ter que Me Engolir'
3ª temporada
Disponível para assinantes Netflix