O ano de 2020 foi complicado e de achatamento de recursos para o setor cultural, seriamente impactado pela pandemia da Covid-19. Os votos de esperança e fé em um 2021 melhor nem bem foram renovados, e a realidade que se impõe nestes primeiros dias do ano para artistas, produtores e toda uma cadeia econômica passa longe de ser a esperada. Isso porque, segundo uma matéria publicada em meados de dezembro pela “Folha de S.Paulo”, havia centenas de projetos incentivados via Lei Rouanet – agora, na gestão Bolsonaro, chamada de Lei de Incentivo à Cultura (LIC) – parados no gabinete do capitão da Polícia Militar André Porciuncula, chefe da Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic), subpasta da Secretaria Especial da Cultura, que está vinculada ao Ministério do Turismo.
Porciuncula tinha até 30 de dezembro para dar aprovação final aos projetos. Com essa assinatura, os proponentes estão aptos a receber o recurso acertado com os patrocinadores. Estima-se que haja entre 200 e 300 iniciativas estacionadas nas gavetas da Sefic. Questionada sobre a situação dos projetos e se os procedimentos burocráticos tiveram andamento, a assessoria de imprensa do Ministério do Turismo não havia respondido ao contato da reportagem até o fechamento desta matéria.
“Esses projetos estão sofrendo o famoso apagão da cultura”, comenta um produtor cultural, que preferiu não se identificar. Segundo ele, as mudanças no comando da Secretaria Especial de Cultura prejudicam a dinâmica da pasta, hoje chefiada pelo ator Mário Frias, que assumiu o cargo em junho de 2020 como a quinta aposta do presidente da República em um ano e meio de gestão. “Houve uma série de indefinições de como essa área (fomento e incentivo à cultura) iria se desenvolver na atual secretaria”, comenta o produtor.
Já Bruno Golgher, produtor responsável, entre outros eventos, pelo Savassi Festival, diz que teve sorte, já que seus projetos foram integralmente liberados em setembro, antes de problemas processuais na secretaria se intensificarem. No entanto, ele lamenta a situação: “Para quem tinha patrocínio e perdeu, é uma tragédia. É muito duro, injusto e revoltante, e o impacto disso é devastador, é uma pequena tragédia, acrescentada a muitas outras que o setor viveu em 2020”.
Por outro lado, há um entrave que também dificulta a vida dos gestores. Muitos deles já tiveram seus projetos homologados, inclusive já conseguiram captar o recurso, mas a verba segue travada em uma conta bancária controlada pela Secretaria Especial da Cultura, quando deveria constar em uma conta cuja movimentação estivesse liberada para os proponentes. É o caso da produtora Danusa Carvalho, da Casulo Cultura.
“Estou com um recurso preso desde o início de setembro, o patrocínio já foi depositado na minha conta, mas não consigo movimentar esse dinheiro. O sentimento é de frustração e falta de respeito”, ela comenta. Danusa diz entender as dificuldades do momento, agravadas pela pandemia, em que prazos podem ser adiados, mas considera que há um desequilíbrio excessivo e uma falta de diálogo por parte da Sefic: “Não há retorno, tem quase 70 dias que eles não me respondem”.
Sócia-diretora da Universo Produção e coordenadora geral da Mostra de Cinema de Tiradentes, Raquel Hallak realizou a mostra CineBH em outubro passado, mas até hoje não conseguiu pagar os fornecedores do evento, pois o recurso ainda não foi depositado na conta para movimentação. A gestora diz que não há pareceristas suficientes na Sefic para agilizar os processos. “Os pareceristas foram demitidos, a secretaria está inoperante, e não há nenhuma previsão. O discurso que precisa ser adotado é o que essa paralisação na movimentação dos recursos ocasiona, o quanto isso impacta a economia. São fornecedores que precisam receber, são impostos que deixam de ir para o mercado”, ela alerta.
Advogado ressalta impactos negativos
Segundo o advogado Renato Dolabella, que atua na área cultural há muitos anos, mecanismos como a Lei Rouanet também se refletem em aspectos socioeconômicos. O especialista diz que, quando o mecanismo trava num momento em que o recurso deveria girar, todo mundo sai perdendo. “O impacto social é muito negativo. Os números mais conservadores colocam a cadeia da economia criativa girando duas vezes o valor do investimento, mas pode ser muito mais. Cada real gera um efeito multiplicador e geração de riqueza”, destaca.
Sobre a momentânea impossibilidade de se movimentar os recursos já captados, Dolabella pondera que os projetos têm uma fase de planificação, pré-produção, divulgação e, se a verba fica retida, todo um planejamento é prejudicado. No caso extremo de perder o patrocínio aprovado em 2020 e ainda não liberado em conta pela Secretaria Especial da Cultura, já que o ano fiscal mudou e as empresas privadas podem doar até 4% de seu Imposto de Renda relativo ao ano em exercício, o advogado é taxativo: “Se a conta não estiver aberta, já era. Os projetos que ficaram nesse gargalo perderam o patrocínio. É como se o artista ou o produtor voltasse à estaca zero. Virou o ano, é outro exercício fiscal”, esclarece.