Literatura

As belas construções literárias de Djaimilia Pereira de Almeida

Em A Visão das Plantas, lançado no Brasil pela Todavia, autora nascida em Angola reafirma o seu talento para a escrita

Por Patrícia Cassese
Publicado em 08 de junho de 2021 | 07:30
 
 
 
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Uma nota triste precede o comentário sobre "A Visão das Plantas", livro de Djaimilia Pereira de Almeida recentemente lançado no Brasil pela editora Todavia. Autor da belíssima ilustração da capa, Willian Santiago faleceu no início do mês passado, em função da Covid-19: o designer paranaense, vale dizer, tinha apenas 30 anos! "A Visão das Plantas", quem acompanha o mundo literário sabe, arrebatou, no final do ano passado, o segundo lugar do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa - que, por sua vez, sagrou, no primeiro posto, o livro "Torto Arado", do brasileiro Itamar Vieira Junior.

Nascida em Luanda, Djaimilia, 39, foi criada em Portugal, nos arredores de Lisboa, tendo se formado em Estudos Portugueses, com doutorado em Teoria da Literatura. Lançado em Portugal pela casa editorial Relógio D’Água, "A Visão das Plantas" é o quinto livro publicado da escritora, que estreou com o pé direito em "Esse Cabelo" (2015). Depois, vieram  "Ajudar a Cair", "Luanda, Lisboa, Paraíso" (lançado aqui pela Companhia das Letras) e "Pintado com o Pé"   - aliás, com o romance  "Luanda, Lisboa, Paraíso", ela já havia vencido o Oceanos 2019. Este ano, publicou "Maremoto".

A narrativa de "A Visão das Plantas" centra-se em Celestino, homem que, agora, como é apontado, está "no crepúsculo da vida", devotado a seu jardim, em meio à "monotonia saborosa dos seus hábitos de capitão velho". A lida com as plantas - o feijão verde nascido ao acaso, as intrusas ervas daninhas, o bambu espreitando entre as pernadas do azenho -  pode a princípio soar poética e indicativa de um homem sensível, até termos fornecidas as pistas do passado do personagem: um facínora, como se dizia na própria vila onde ele hoje habita. Trata-se de um morador cuja presença é citada por mães na hora de amendrotar os filhos e forçá-los a cumprir regras. Exemplo: se um não comer toda a sopa que está no prato, receberá o castigo de ser levado à casa daquele temido morador. Não bastasse, nas ruas, as mães não hesitam em colocar as mãos diante dos olhos de seus meninos nas vezes em que porventura cruzam com essa figura nefasta.

E o que exatamente Celestino fez, no passado (isso para quem não leu a orelha, a contracapa ou as resenhas já publicadas)? Bem, como se descobre no avançar da leitura, coisas como sufocar, em alto mar, mais de 60 escravos com o vapor emanado do cal lançado no porão onde eles estavam confinados, por meio de buracos. Algo que, salienta a narrativa, nenhuma flor do atual jardim jamais saberia ou lamentaria. Sim, porque, na verdade, "todos os dias o jardim estava indiferente". A tal "visão" das plantas. Ou a ausência dela.

Celestino surgiu para Djaimilia a partir da obra "Os Pescadores" (1923), do autor português Raul Brandão (1867 - 1930). Lá, ele é apenas citado como um homem que, tendo começado a vida como pirata, "a acabou como um santo", cultivando seu jardim. O trecho, aliás, precede a narrativa, no livro, como um prefácio. Sem tocar diretamente no horror do tráfico de escravos, sem pormenorizar o caráter hediondo deste "comércio" que foi portanto tempo naturalizado, Djaimilia consegue fisgar o leitor a partir de sua escrita composta por frases muito bem construídas.

 

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