Não tem palco, não tem microfone, nem mesmo algum instrumento. A produção é simples, caseira e aconchegante. A sambista Teresa Cristina, 52, acerta o batom, alinha o repertório, posiciona o celular e, religiosamente todos os dias, a partir das 22h, dá início a encontros que se estendem por horas. Em sua casa, a carioca “recebe” milhares de brasileiros que acompanham avidamente suas lives no Instagram. Com o público, divide músicas, cantando a capela, e o enciclopédico conhecimento da cultura brasileira. Nas conversas, como quem conta histórias para um velho conhecido, ela compartilha memórias íntimas, sempre atravessadas por uma aguçada leitura sociopolítica. Acima de tudo, com a crescente audiência – antes, ela somava 98 mil seguidores no Instagram, agora, até esta segunda-feira (8), já são mais de 235 mil –, troca um afeto sensível em seus vastos sorrisos e suaves lágrimas.
Os encontros virtuais, com anônimos e famosos, que ganham espaço sem distinção, se tornaram frequentes desde que se agravou a crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19. “As mortes começaram a aumentar ao mesmo tempo em que eu percebia um descaso com a vida das pessoas. Pensei que não podia absorver isso, que era algo que estava me fazendo mal agora e iria me fazer mal depois”, relata. Ao perceber o desenhar de um quadro depressivo, algo parecido com o que enfrentou depois da morte de seu pai – “a boca ficava seca e sentia um pânico, que durava alguns segundos, mas angustiava” –, Teresa buscou refúgio em pesquisas sobre a música brasileira.
“Eu preciso fazer algo por mim, que me obrigasse a dedicar atenção. Eu já sabia que eu gostava de estudar, que eu gostava de aprender canções, de guardar letras. Então, mergulhei nisso”, comenta. Em um impulso espontâneo, começou com as despretensiosas transmissões. “E, depois disso, ficou claro que aquele era o momento em que eu ficava mais relaxada, que eu ficava mais leve em todo o dia”, conta. Por isso, não mais parou.
Agora, já prepara noites especiais: estão no radar o aniversário de Maria Bethânia (18/6), de Chico Buarque (19/6), e de Gilberto Gil (26/6).
A sensação de que a conversa acontece em uma mesa de bar, implicando em diversas derivações de um tema inicial, não é exclusiva da Teresa Cristina que se vê nas lives. Em conversa com a reportagem, a sambista, logo nos primeiros minutos, falou de música, de política e de história.
Ela comparou a ansiedade provocada pelo desenrolar da crise causada pela pandemia aos depoimentos de Nelson Cavaquinho (1910-1986) em um documentário de 1969, dirigido por Leon Hirszman (1937-1987), um dos expoentes do Cinema Novo, e dedicado ao músico. No filme, o sambista fala, entre outros temas, sobre a impactante visão de “caminhões cheios de cadáveres”, vítimas da gripe de 1918. “Ele tinha 8 anos quando sofreu esse baque, que vai se refletir em toda a sua obra. Suas músicas falam sobre a perda, o luto, a culpa do ser humano e até naturalizam a morte de certa maneira”, aponta.
Intimidade
De tanto receber milhares de fãs em casa – algumas lives já ultrapassam a marca de 5.000 espectadores simultâneos –, alguma intimidade foi forjada. Daí, entre os frequentadores desses calorosos encontros, Teresa passou a ser simplesmente Tetê. Os fãs, por sua vez, ganharam nome próprio: são os “cristiners”.
“Eu reencontro amigos e conheço pessoas que eu nem sabia que existiam. Muitos artistas que entram ali e dialogam comigo, alguns eu realmente não esperava ver por ali; eu pensava que não sabiam quem eu era”, observa.
A sambista diz ter sido surpreendida, por exemplo, pela presença da carioca Marina Lima, das baianas Simone e Gal Costa, do paraibano Chico César e do mineiro Flávio Venturini.
Na última terça-feira (2), foi surpreendida pela maranhense Alcione. Foi nessa transmissão que Marrom criticou o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, quando surgiram áudios em que ele chama o movimento negro de escória durante uma reunião. O evento era dedicado a pontos de umbanda. “Quis fazer esse repertório pelas canções lindíssimas, pela espiritualidade que o momento exige e em resposta à intolerância religiosa, cada vez mais forte. Nosso povo não deve ter vergonha da sua religiosidade”, explica Teresa.
Outros ilustres também participaram das lives e causaram furor, caso de Caetano Veloso e Alexandre Pires, com quem a cantora falou longamente. Na segunda-feira, 1º de junho, foi a vez de receber Lulu Santos em um “programa especial”, dedicado às músicas dele. “Eu acordei pensando que, poxa, canto tanta coisa dele em casa... Fui ver, separar as músicas do Lulu, e já anotei 30 sucessos! Eu não vou precisar ler letra nenhuma, estão em nosso imaginário”, elogia, celebrando que os eventos na web permitem a ela visitar repertórios que, no dia a dia de seu ofício, não costumava acessar.
Na quinta-feira (4), nos minutos finais da apresentação da sambista, dedicada ao álbum “Realce” (1979), de Gilberto Gil, o baiano deu o ar da graça – o que foi motivo de celebração e comoção. Na exibição, Bela, Preta e Francisco Gil já haviam aparecido.
Teresa recebe também participantes que, apesar do talento, ainda são desconhecidos do grande público. Caso da poeta e rapper mineira Laura Conceição, que apareceu por cinco minutos e, em seguida, ganhou centenas de milhares de seguidores. “Quando alguém que eu conheço e confio me sugere que convide uma pessoa, sei que não está falando isso à toa”, diz. A mineira, no caso, foi referendada por Tom Grito, organizador do Slam das Minas no Rio de Janeiro. Viraram presenças constantes na programação o pianista de jazz Jonathan Ferr e a cantora e instrumentista Sílvia Borba.
Lideranças políticas também frequentam o espaço. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, surgiu para pedir a canção “Leva meu Samba”, de Ataulfo Alves (1909-1969), e “Nervos de Aço”, de Lupicínio Rodrigues (1914-1974). Já o ex-senador Eduardo Suplicy, além de cantar, detalhou sobre como, em meio à pandemia, segue trabalhando para viabilizar o projeto de renda básica universal – em que uma quantia em dinheiro seria paga a cada cidadão visando a garantia de satisfação das necessidades básicas de todos.
Horizontal
O cantor, compositor e multi-instrumentista mineiro Sérgio Pererê, que já participou de algumas transmissões, vê na mistura proposta por Teresa uma maneira de oxigenar o fazer artístico. “Tenho gostado muito dessa iniciativa dela. Fico sentindo que, diante de tudo que está acontecendo, nós, artistas, precisamos dessa sacudida, de pensar qual é a real função da arte e de que forma nosso trabalho se situa no atual contexto social e político, apesar do momento delicado”, avalia.
Na opinião de Pererê, a sambista vem rompendo com práticas canônicas do meio musical. “Quando a Teresa convida o Caetano, me convida e depois chama uma poeta do interior de Minas, ela promove uma horizontalização das relações. Mostra que, neste momento, de certa maneira, estamos em uma situação parecida…”, analisa. Uma reflexão que encontra eco nas palavras de Teresa Cristina: “Um artista é gigante quando cabe no nosso tamanho”.
Outro componente político que perpassa os critérios de escolha dos convidados é explicitado por ela própria: a predileção, diz Teresa, é oferecer visibilidade a artistas negros. “Fico muito feliz quando consigo ajudar de alguma forma, porque a nossa fila é muito mais longa”, pontua a cantora, que fala de sua própria experiência.
“Em 1998, começando minha carreira musical, tentei patrocínio para cantar (composições do sambista carioca) Candeia (1935-1978). Esse patrocínio só apareceu agora, 22 anos depois. Em toda minha trajetória, é a primeira marca que concordou em colocar o nome dela ao lado do meu nome”, examina, fazendo referência à live realizada no dia 30 de junho e que foi patrocinada pela Original, marca de cervejas da Ambev. “Eu não preciso nem falar as razões para que tenha demorado tanto. Basta ver o tipo de artista que costuma ser visibilizado”, critica.
Permanente luta contra o racismo
Partindo sempre de uma perspectiva contra o preconceito, ela está atenta à insurreição de marchas antirracistas nos Estado Unidos – que eclodiram depois da morte de George Floyd, de 46 anos, vítima de flagrante violência policial – e aos germinais protestos no Brasil e, em especial, no Rio de Janeiro – em que as forças de segurança do Estado assassinaram João Pedro Mattos, de 14 anos.
“A paz racial brasileira é forjada. Quando uma criança é morta por policiais, quando militares quebram barracos e essas pessoas, vítimas dessa violência, vão para as ruas e queimam pneus, elas são vistas como arruaceiras, porque são pretos, porque são favelados. Sempre vão querer nos silenciar”, lamenta.
“Mesmo os não pretos deveriam ir para as ruas contra essas mortes. A gente não pode continuar a achar que as coisas se resolvem com moção de repúdio, não temos esse tempo. Olha a crueldade que foi aquela morte (de Floyd), a morte de João Pedro. Já passamos por outras mortes cruéis, e nossa sociedade continuou. As coisas precisam ser feitas rápido. É preciso ser antirracista em tempo integral! O descaso com a vida preta tem que acabar”, conclama Teresa Cristina.