“Véspera”, terceiro livro assinado por Carla Madeira, aporta neste mês nas livrarias virtuais e físicas de todo o país em um momento particularmente propício para a autora: é que, pelo andar da carruagem, a mineira vai de fato encerrar o ano como a autora em atividade mais vendida no país na seara literária – se formos considerar ambos os sexos, ocupando o segundo posto, atrás apenas de Itamar Vieira Junior, com o seu aplaudido “Torto Arado”. O livro que catapultou Carla a esse posto, na verdade, foi o que marcou a sua estreia no território das letras, “Tudo É Rio”, lançado em 2014 pela Quixote+Do e relançado neste ano, com nova capa, pela Record – que, aliás, também chancela “Véspera”. Entre um e outro, a escritora publicou “A Natureza da Mordida”, também pela Quixote+Do.
Em “Véspera”, o leitor se depara com dois tempos narrativos, alternados por capítulos. O tempo passado traz Custódia e seus dois filhos gêmeos, Caim e Abel, assim batizados pelo pai à revelia da genitora. O salto temporal coloca Vedina, mulher de Abel, no papel de protagonista, e logo de cara cometendo um ato que provavelmente só uma pessoa numa situação emocional limítrofe faria: abrir a porta do carro e abandonar Augusto, o filho do casal (uma criança, portanto considerada incapaz), na rua, sozinho, à sua própria sorte. O arrependimento, que se dá em fração de segundos, lança Vedina num torvelinho, já que, ao finalmente conseguir contornar o quarteirão, o garoto não está mais lá, no local onde havia sido deixado.
Curiosamente, foi só já no curso da escrita que Carla se deu conta de que, anos antes, havia escutado da boca de seu pai um relato afim. “Eu estudava na Federal (UFMG) e, como meu pai dava aulas de matemática lá, geralmente pegava carona com ele para ir e voltar. Um dia, ele estava me esperando no carro e, quando entrei, o vi muito comovido. Ele tinha acabado de ouvir no rádio a história de uma mulher que estava no ônibus com o filho, e este, ‘pintando’. Numa parada ela fez o menino descer com ela, mas entrou de novo no veículo, que arrancou, deixando o garoto na estrada. O relato, feito pelo locutor na rádio, deixou meu pai abalado, pensando no que o menino havia sentido vendo a mãe abandoná-lo”, rememora a autora. “Fui me lembrar disso depois, quando já estava escrevendo o romance, mas é assim mesmo, as histórias às vezes vêm como uma fagulhinha, e, quando a gente vê, viram uma coisa forte”.
Emlongo prazo. O processo de escrita de “Véspera” consumiu três anos “de muita dedicação, estudos e leituras, como uma mais profunda da Bíblia”, conta Carla, referindo-se ao fato de ter usado, em sua obra, o nome dos irmãos cuja história é narrada no livro do Gênesis. Literalmente no meio do caminho, veio a pandemia do novo coronavírus. “O que foi ainda mais desafiador”, diz ela, que manteve consigo mesma o compromisso de todos os dias se debruçar sobre o texto. Em relação à história propriamente dita, Carla enxerga três camadas na obra, sendo que uma delas, alerta, só é plenamente entendida ao final. “Não dá para falar muito, seria bem spoiler”.
Mas a autora confirma que o grande acontecimento é mesmo o abandono de Augusto por Vedina. “A questão central é: como uma pessoa pode chegar a tal extremo? Como essa mãe chegou nesse lugar de abandonar o filho?”. Para tentar responder, Carla optou por esse cruzamento (temporal) exatamente para mostrar a ‘véspera’ (do acontecimento). “Vou lá atrás, na história dos gêmeos Caim e Abel. Falo do nascimento dos meninos, o motivo de terem recebido esses nomes...”.
Ela lista outras duas questões que atravessam a obra, sendo a segunda a da rejeição. “Se a gente for pensar, o relato bíblico de Caim e Abel corresponde, ao menos na matriz cristã, à história da primeira rejeição de que se tem, digamos assim, notícia: a de Deus, que não aceita a oferenda de Caim. A história de Vedina e Abel também contém um episódio de rejeição”, analisa. “Então, a história também fala disso, de a gente não aceitar o que as pessoas têm a oferecer e o julgamento das oferendas”. Para Carla, uma questão bastante atual. “Tanto que a gente está vendo aí, hoje, com muita intensidade, os cancelamentos nas redes sociais, essa dificuldade que a gente vê em tantas pessoas: aceitar o outro como ele é”.
Por último, mas não menos importante, o terceiro ponto, considera Carla, se coloca ao fim da leitura. “Que é como a gente olha para uma história. Porque, toda vez que fazemos isso, acabamos inventando uma verdade, já que (sobre o fato) há a nossa interpretação, e às vezes ela (inconscientemente ou não) é feita da maneira que nos é conveniente. Uma interpretação de uma pessoa pode ser completamente diferente da feita por outra. A gente inventa verdades o tempo inteiro. Em tempos de fake news, acho que é uma grande questão que está sendo trazida”, conclui.
Confira, a seguir, outros trechos da entrevista
O lançamento em BH acontece neste sábado. Qual a sua expectativa de ver mais uma obra chegando às mãos do público?
Sim, tem uma expectativa de começar a ver o livro acontecer no leitor, e a partir dessa ressonância, parece que a gente vai compreendendo um pouco melhor a escrita, então, é um processo muito interessante, muito rico, ter as primeiras ressonâncias, ver quais os pontos que ganham mais força, o que é mais impactante, o que faz mais sentido. Quando você termina a escrita, em um primeiro momento sente um certo vácuo, porque, afinal de contas, você para de fazer uma coisa à qual estava se dedicando intensamente, que era escrever e cuidar do livro. Então, dá até mesmo uma certa solidão, um sentimento de separação. Mas aí começa a acontecer essa reverberação no leitor, que é muito legal de ver acontecer. Na verdade, para ser sincera, eu não me preocupo muito com isso quando estou escrevendo. Não tenho uma preocupação de 'ah, o que o leitor vai..', mas sim contar a história dentro do meu envolvimento, do que estou cosntruindo, fico realmente muito envolvida e concentrada na escrita. Depois sim, a gente começa a se interessar, a ver como está batendo, se está fazendo sentido, se o jeito de contar prende o leitor, e se ao mesmo tempo (a leitura) é prazerosa pela qualidade do texto. Estou nesse momento, de começar a perceber o que fiz. Algumas pessoas já vão me dando esse retorno de uma tensão que vai rolando ou sobre alguns personagens. O Padre Tadeu, por exemplo, já percebi que é carismático. Claro que tem um pouco de angústia também. Enfim, é um momento diferente na vida do autor, para mim pelo menos é uma experiência muito intensa.
Consegue vislumbrar um perfil do seu público?
Tem uma coisa interessante nos meus livros. A turma da psicanálise, por exemplo, sempre foi muito forte (como leitora). E, hoje, vejo muito também um crescimento do público masculino. Em um momento inicial sim, era mais o feminino, até porque, nos clubes de leitura (onde "Tudo É Rio" foi bem acolhido), eu via uma predominância maior de mulheres. Mas agora não. "Tudo é Rio" 'pegou' pessoas muito diferentes, dos mais novos aos mais velhos, senhoras. Foi uma experiência muito rica neste aspecto de um público diversificado.
Aliás, como foi seu contato com o público durante a pandemia, com a suspensão das feiras literárias, debates?
Fiz muitos, muitos, muitos clubes de leitura. Antes, já fazia muito, de forma presencial. Durante a pandemia, passou a ser de modo virtual, mas fiz muitos e sempre é muito legal ter a oportunidade de ter essa troca com o leitor, discutir o livro. Esse processo é delicioso, porque, de uma certa forma, o livro acaba sendo reescrito pelo leitor. Tem aquele que fala: "ah, não queria que ele tivesse feito isso". Vejo muito isso com 'Tudo é Rio'. São tantas histórias ali, e cada um se prende a uma percepção. Um aspecto fica mais relevante para um leitor, outro para um segundo... É muito rico sentir o livro chegar a pessoas tão diferentes, a escutas tão diferentes, apreciações tão diversificadas. Pelo lugar que ocupa no mundo, pela história de vida particular, cada um decodifica o conteúdo de uma maneira diferente.
Programe-se
“Véspera” (Editora Record, R$ 49,90), de Carla Madeira
Lançamento neste sábado, das 11h às 14h, na Vila 211 (rua Professor Estevão Pinto, 211, Serra)