É praticamente impossível que alguém que tenha passado pela 25ª CasaCor Minas, no ano passado, tenha ficado impassível diante de um dos projetos instalados nos jardins do Palácio das Mangabeiras. Trata-se de “Cuboesia”, instalação híbrida que une arquitetura, escultura e poesia. O cubo de aço de 4 m x4 m2 tem as seis faces vazadas por letras que formam pequenos poemas. A boa notícia é que, na edição deste ano, a partir de agosto, “Cuboesia” seguirá lá, dando mais uma oportunidade aos visitantes de apreciá-la.
A obra leva a assinatura de Bel e João Diniz, que explica a investida. “Os visitantes podem literalmente ‘entrar na poesia’, no seu texto, e na trilha sonora, também criada por nós”, descreve o arquiteto... e também poeta. Diniz, aliás, foi um dos homenageados do último Psiu Poético, em Montes Claros. O entrelaçamento de poesia e arquitetura em sua trajetória pode ser apreciado também na mostra “Typos Extraños”, em cartaz na galeria Asa de Papel. “Ela, na verdade, é um desdobramento de ‘Cuboesia’. Tomo os fragmentos das letras resultantes da confecção do grande cubo e os uso como máscaras ou formas para a criação de pinturas nas quais proponho uma espécie de ‘novo idioma’ ou ‘alfabeto tipográfico’. Somando-se a essas grafias pictóricas, e completando-as, estão poemas visuais que fiz anteriormente”, descreve ele. Diniz esclarece que esses trabalhos (tanto a instalação quanto as obras da mostra em cartaz), na verdade, integram uma série ainda mais ampla, batizada de “Poematéria”, “uma investigação em torno das possibilidades do texto poético em suportes que vão além da folha de papel”.
Voltando um pouco no tempo, Diniz revela que seu interesse por poesia escrita vem dos tempos de colégio, “quando estudávamos literatura”. “Os poetas me chamavam atenção pelo poder de síntese e da produção de textos emocionados”, rememora. A convivência com a obra de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Federico García Lorca, Rimbaud, Hilda Hilst e outros instigava o mineiro, que passou a “tentar algumas escritas”. Já o interesse pela música o levou a estudar inglês, com vistas a decifrar os cantos de Bob Dylan John Lennon, Pete Townshend, Lou Reed, Leonard Cohen e Joni Mitchel. “E depois fui tentar traduzir os poetas beats: Ginsberg, Kerouak e Ferlinghetti”.
Essência
Hoje, ele diz que sua ideia de poesia vai além da escrita de estrofes e versos. “Acho que a palavra tem a ver com a ‘essência’, que pode estar em muitos aspectos da vida e de nossa ação. Quando determinada atitude alcança sua essência, se torna poética. Assim, um diálogo, uma arte, uma música, uma construção, uma fotografia ou um desenho podem ser poéticos. Tudo o que faço, faço como arquiteto. Arquitetura é uma formação ampla e humanista, com disciplinas ligadas às ciências sociais, história, geografia, tecnologias, artes, técnicas de representação e projetos, e isso permite um entendimento prévio de diversas áreas do conhecimento”.
Aliás, no livro “Steel Life: Arquiteturas em Aço”, Diniz adotou uma linguagem poética para falar dos projetos. Na sequência, lançou “Ábaco” e “Aforismos Experimentais”, 100% poéticos. “A questão dos aforismos me ronda – é o desafio de como descrever com a frase mais curta possível determinada situação ou sentimento. Acho uma prática muito válida para entendermos tempos de absurdos e polarizações”, diz.
Versos em suportes pouco prováveis
Diniz já havia criado objetos na série “Poesia Cúbica”, que consiste em peças menores, que podem ser entendidas como esculturas com textos ou peças de mobiliário. “Após lançar os livros de poesia, passei a participar de apresentações poéticas fazendo leituras. E como não sei decorar, imaginei que as palavras poderiam estar em outros suportes além do papel, como lenços, sapatos ou sanfonas, e nos quais os textos acompanhariam o sentido funcional das peças”. Daí vieram os “poemobjetos”, que podem ser manipulados nas performances. “Nelas, também acrescento sons eletrônicos que componho e executo, às vezes acompanhado por instrumentistas, e também eventualmente por imagens filmadas”, conta.
O arquiteto inclusive pensa em lançar um livro sobre maneiras de se ter poesia sobre suportes não convencionais ou imprevistos. “Gosto da forma progressiva como as ideias vão surgindo e acrescentando novos caminhos ao que já está produzido”, conclui.
No prelo, três livros de poemas e um de fotografias de NY
Em cartaz na Asa de Papel Café e Galeria (rua Piauí, 631, Santa Efigênia) até o dia 29, “Typos Extraños” traz pinturas feitas com spray sobre papelão, tela e madeira. A crítica de arte Marília Andrés Ribeiro aponta que, nelas, as letras, que remetem aos poemas do artista, saltam em diversos tamanhos e configurações, e em variadas cores. Ainda segundo Marília, as obras dialogariam com trabalhos de Robert Indiana, Waldemar Cordeiro e Rubens Gerchman.
Finda a exposição, João Diniz pretende alavancar os planos de publicar três livros de poesia que estão prontos. “E tenho ainda um de fotografias feitas em Nova York que também vou finalizar”. Não bastasse, ele vai prosseguir com as pesquisas de outras duas séries, “Trama” e “Teia”, de esculturas com barras metálicas.
Confira, a seguir, um pingue-pongue com o dublê de arquiteto e poeta.
Como foi ser homenageado no Psiu Poético, ano passado?
O Psiu Poético é um festival de poesia que acontece em Montes Claros há 33 anos, coordenado pelo poeta e agitador cultural Aroldo Pereira e que a cada edição homenageia seis poetas brasileiros. Em 2019, o tema foi CinePoesia, explorando as relações da poesia com o cinema, então, fui convidado a apresentar uma fala poética lá, que fiz executando sons eletrônicos e manipulando poemobjetos. Exibi lá também meus dois curtas, o "PARISk", sobre a capital francesa, e o "Astrolábiao", sobre Salvador. Esses filmes fazem parte da série "Visible Cities", que tem um livro de mesmo nome impresso, e no qual busco uma leitura de cidades unindo fotografia, vídeo, poesia, urbanismo, arquitetura e paisagem social. Esses filmes tiveram boa recepção lá, em MoC. Os demais homenageados foram Luciana Martins (poeta, escritora e professora maranhense), Paulo Henrique Souto (cineasta montes-clarense), Rosani Abou Adal (escritora, poeta, publicitária, jornalista e editora paulista), Jairo Fará (professor, artista visual e jornalista) e Olivia Ikeda.
Como arquiteto, tem visto algum movimento na capital mineira que lhe chama a atenção? E no Brasil, em geral?
BH é uma cidade muito ligada à arquitetura, desde sua ligação com Ouro Preto, que pode ser entendida como uma "cidade mãe", passando pela aventura de se transferir a capital e projetar uma cidade no final dos anos 1890. Depois o arrojo modernista com a construção da Pampulha e diversas obras referenciais que vão além da genialidade de Niemeyer. No final do século XX surge um movimento arquitetônico contestador cujos representantes principais foram Éolo Maia e Álvaro ‘Veveco’ Hardy, que já nos deixaram. Eu comecei a atuar nessa época e mantenho esse espírito de liberdade em torno de nossa profissão. Acho que atualmente temos questões emergenciais em nossa cidade, como a questão das enchentes, da mobilidade sustentável, da acessibilidade social aos espaços que é o direito à cidade, da minimização de gastos energéticos, da valorização de áreas verdes e espaços públicos, da requalificação do centro que é a alma da urbanidade. Essas questões urbanas vão além da questão estética dos edifícios e os arquitetos podem e devem participar, mas sempre em diálogo com outras vozes da sociedade.
De toda forma há um time genial de arquitetas e arquitetos em BH que estão sempre apresentando arquiteturas pontuais inovadoras. Recentemente, o escritório dos "Arquitetos Associados" foi indicado para fazer a curadoria do Pavilhão do Brasil na Bienal 2020 de Arquitetura de Veneza, Itália. É bom saber que a ideia da arquitetura brasileira que será mostrada na Europa vai partir daqui.
No mundo, apontaria alguma tendência?
Sempre surgem obras interessantes e as redes sociais nos bombardeiam com novidades. Eu acho que o "estilo do século XXI" está muito mais ligado à questão ecológica do que a gestos formais e de moda. Gosto quando vejo bons arquitetos interpretando as exigências do momento com recursos locais e econômicos, isso tem acontecido em países vizinhos como Paraguai, Peru e Colômbia, onde novos arquitetos têm produzido obras muito boas.
Na dita arquitetura internacional, dentre vários, gosto dos japoneses do Sanaa, dos projetos do escritório suísso Herzog De Meuron e do italiano Renzo Piano. Inclusive vejo um paralelo, em questões de construtibilidade e conforto ambiental, entre a arquitetura dele e a do brasileiro João Filgueiras Lima, o Lelé, que é um profissional que admiro muito.
Na poesia, quem tem lhe interessado, atualmente?
Sei que existem muitos bons lançamentos e não consigo acompanhar todos, além dos "clássicos" que citei e estou sempre relendo. Recentemente, gostei dos novos livros de Luís Turiba, Tonico Mercador, Murilo Antunes e Kiko Ferreira. E acompanho com admiração o trabalho de poetas de BH como Ricardo Aleixo, Ana Martins Marques, Adriana Garcia. Tenho lido livros já há um tempo lançados, como o do Rodrigo Leste, que antecipa essas tragédias das minerações, as prosas poéticas do Pedro Maciel, as obras completas de Nicanor Parra e Waly Salomão. Fico de olho em autores que trabalham com a visualidade dos poemas, como Joan Brossa, Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, Mario Alex Rosa e Marcelo Dolabela, que nos deixou há pouco.
Como está vendo a cena cultural na cidade?
BH tem uma cultural diversificada, desde uma orquestra filarmônica residente no belo edifício projetado pela Jô Vasconcellos até os slams poéticos em bairros distantes do centro. O circuito cultural em torno da Praça da Liberdade oferece muitas opções a moradores da cidade e a turistas que comentam positivamente essa face artística da cidade. O carnaval de BH é um fenômeno novo que tem uma vertente cultural importante quando propõe atividades distantes do centro levando os foliões a descobrir mais a cidade. Frequento a Asa de Papel Café & Arte, um coletivo colaborativo de mais de 40 pessoas, que funciona na Rua Piauí 631,e é um tipo de bar cultural aberto a todos e onde acontecem exposições, lançamentos de livros, saraus, shows, debates, festas, degustações, performances... Embora o lugar seja pequeno é uma espécie de usina cultural. Essas ações se estendem a exposições externas na praça em frente, projeções de cinema, festa junina, feiras literárias e de artes, e até em um bloco inclusivo de carnaval, onde os foliões incluem cadeirantes e pessoas com necessidades especiais, é o Todo Mundo Cabe no Mundo, fundado pelo Marcelo Xavier.
Além dele, muitos autores estão sempre por lá, mostrando suas criações, trocando ideias e armando novos planos, como Romulo Garcias, Raquel Martins, Maria Antônia Moreira, Jayme Reis, Marcos Magalhães, Cláudio Rocha, Beto Moreira, Marilia Andrés, Paulo Mendes, José Napoleão, Marcelo AB, Everaldo Crispin, Sérgio Torres, Alex Eck-Nog, Fernando Righi, Sérgio Machado, Rose Guedes dentre vários outros. Acho que a Asa de Papel é um movimento que entrará para a história da cultura alternativa da cidade.