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Começa neste sábado a 1ª Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte

Evento tem programação com filmes brasileiros, africanos e da diáspora afro-atlântica; também promove debates, homenagens e oficinas

Por Patrícia Cassese
Publicado em 10 de abril de 2021 | 09:09
 
 
 
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Um festival que propõe um olhar direcionado a memórias africanas, diaspóricas e brasileiras, com uma programação ajustada aos tempos de pandemia - portanto, online - e que, ao ser gratuita, privilegia o acesso de um público mais amplo. Com essas credenciais de respeito, começa neste sábado a 1ª edição da Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte, que prossegue até o dia 16, com vários chamarizes - entre eles, um curta inédito de André Novais Oliveira e retrospectiva do Fespaco, o celebrado Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou, que, cumpre dizer, é o maior festival de cinema da África (realizado a cada dois anos em Ouagadougou, Burkina Faso). Ah, sim: em sua primeira edição, a Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte também promove debates, homenagens e oficinas.

Idealizado por Layla Braz, o evento, neste début, tem como tema as memórias, registros pessoais e coletivos. Os filmes nacionais e internacionais estarão disponíveis pela plataforma de streaming  todesplay.com.br, e os debates, pelo canal do festival no Youtube. O festival é realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte com patrocínio da empresa MGS.  Ao todo, o festival apresenta os filmes nacionais e internacionais divididos em cinco mostras temáticas. São 50 filmes realizados por pessoas negras brasileiras, africanas e da diáspora, sendo cinco inéditos no Brasil.

Ao Magazine, Layla conta que começou a pensar na Semana ainda em 2018. "O ponto principal, o estopim, foi quando percebi o quão pouco conhecia de cinematografias africanas. Eu tinha me formado em 2016, na universidade, e sai de lá realmente não sabendo nada sobre essa cinematografia, e, com os anos, fui percebendo realmente o quão problemático isso era. Aí, já surgiu o desejo de construir um festival voltado a filmes de pessoas negras". Layla se recorda que, na época, já havia alguns festivais espaçados pelo Brasil que buscavam olhar para essas cinematografias. "Posso citar, por exemplo, o Encontro de Cinema Negro Zozimo Bulbul". Mas sim, era pouco.

Em 2019, quando foi aberto o edital da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, ela, então, inscreveu o projeto de um evento com um recorte pra lá de potente: a Fespaco, citado no início desta matéria, e que já existe há mais de 50 anos. "Propus um seminário ao redor disso: o que a a gente podia trocar com os realizadores africanos, já que a intenção, à época (referindo-se ao fato de, naquele período, ninguém nem sonhar com o advento de uma pandemia) previa trazer alguém do continente africano para BH, promovendo uma discussão do cinema feito aqui, por pessoas negras, e do feito lá".

O projeto foi aprovado no meio daquele ano, mas Layla só foi conseguir o patrocínio no final de 2019, com a MGS. Mas aí veio a pandemia. "O festival estava previsto para acontecer em julho do ano pasado, e com o isolamento social, tivemos que adiar. Assim, teve mais um ano inteiro para se pensar a programação. Mas em conversa com Janaína Oliveira, curadora, a gente resolveu fazer um recorte histórico, inclusive pelo fato de ser o nosso desejo que o evento aconteça sempre - então, a gente vai, a cada um, abordando temas difentes, da próxima vez, talvez como esses filmes trazem esse lugar de novos futuros, fabulações, imaginários, para corpos de pessoas negras, africanas. E foi a partir disso que, em 2020, a gente foi desenvolvendo, pensando em quais filmes comporiam a grande, que  títulos conversam com esse momento que a gente está vivendo". 

Instada a falar sobre os objetivos, Layla rebate: "Costumo dizer que é um conjunto deles". De pronto, a vontade de trazer para BH um festival que se voltasse para as cinematografias africanas. "Esse é um dos mais fortes, com certeza. E também da produção feita no Brasil por pessoas negras. Claro, sabendo que existem outras iniciativas (afins) pelo país, mas em Minas, até onde pesquisei, até hoje foram bem poucas. Sinto falta de a gente ver esses filmes, discuti-los. Veja, estudo cinema e trabalho com cinema há quase dez anos, e tive acesso a essa cinematografia apenas nos últimos três, quatro. É bem absurdo que o Brasil não tenha políticas públicas para a gente  acessar essas histórias feitas por cineastas e realizadores negros".

Um outro ponto para o qual ela chama atenção é a política de formação de público. "O Festival de Arte Negra (FAN), em suas várias edições, incluiu o cinema (em sua grade), mas vi poucas pessoas na sala. Então, (outro objetivo é) melhorar essa política de formação de público para assistir a essa cinematografia. E também ver esses filmes circulando mais". E, claro, um conjunto maior de filmes, uma multiplicidade. Por último, não menos importante, a ênfase não só no campo de estudos, mas também na formação técnica, o que o evento torna possível por meio de oficinas, por exemplo. "Espero trazer mais oficinas e cursos nas próximas edições".

Apontar alguns destaques, claro, é tarefa hercúlea. Mas Layla opta por jogar luz à homenageada do evento, Maria José Novais Oliveira, a Dona Zezé. "Foi muito feliz a forma com ela se inseriu no festival, durante uma conversa com (pesquisadora, curadora e crítica) Alessandra Brito e o filho de Dona Zezé, o cineasta Andre´Novais, na qual a gente falou como seria legal ter uma mostra dos filmes em que ela atuou, discutir sobre else e pensar a forma como ela vê o cinema. É impossível ver ela na tela e não se emocionar, encher os olhos de lágrimas. Essa mulher que entrou na carreira aos 60 anos, essa desenvoltura dela em frente às telas. Lembrando que boa parte dos filmes foi feita com o próprio André e a equipe da FIlmes de Plástico, com pessoas que, acho, ela deve ter perto na vida, e acho que foi natural. As histórias que ele conta para envolver Dona Zezé, e o pai também, são incríveis. Desde 'Alzheimer' até o inédito ("Rua Ataléia", filmado em 2011 e finalizado dez anos depois)".

Aliás, Layla chama atenção para o fato de que este curta vai ficar disponível em streaming apenas por 24 horas. "É importante frisar isso inclusive para as pessoas se programarem. Olha, considero o André um dos maiores cineastas da atualidade, e a forma como ele traz a Dona Zezé (para a tela), e como ela traz essa atuação... Gosto de repetir uma coisa que escrevi: que ela faz realmente a gente ver e sentir o cinema de outra forma. Nas próximas edições, a mostra pretende continuar homenageando outras pessoas que fazem a gente ver o cinema de outras formas. Acho necessário ter essas ferramentas além do entretenimento (sem demérito). Contar nossas vivências, fabular outros mundos". 

Um outro recorte para o qual ela lança luz é o que se refere ao que aborda o já citado Fespaco. "Desde que me aprofundei neste evento, tenho muita vontade de ir para Burkina Faso, viver esse festival. Tenho comigo uma foto em que aparece uma faixa que diz: Quem ama cinema, vive Fespaco". Vale dizer que a mostra  principal celebra a  memória dos 51 anos do Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou.

A idealizadora salienta, ainda, a presença de filmes nigerianos na grade: "Também incríveis". E tem mais: Layla lembra que o evento deixará, como memória permanente, um catálogo, de cerca de 250 páginas, com informações sobre a programação, textos inéditos e ensaios que completam os pensamentos acerca dos filmes. "É uma memória que acho importantíssima destacar, com textos que foram escritos para o evento e outros inéditos, que a gente traduziu". O catálogo tem como destaque as memórias do Festival de Arte Negra, um dos mais importantes eventos do segmento fora do continente africano.

O desafio da curadoria

Vanesssa Santos, uma das curadoras da Mostra Escrituras Pretas, fala do processo de seleção dos filmes que compõem essa grade em particular, ante o manancial que a equipe tinha no horizonte. "A primeira coisa que eu acho relevante e importante ressaltar é que a gente recebeu uma quantidade expressiva de filmes para essa mostra: em torno de 250 inscritos, dos quais nós tivemos o desafio de selecionar 33. E por que menciono a quantidade de inscritos? Por que considero importante se ater ao fato de que existe uma produção expressiva de realizadores negros e afro desdendentes, e isso só reafirma e problematiza o frequente negligenciamento que muitas vezes caracteriza o olhar curatorial que se lança para essas produções, que são valiosíssimas. Então, abrir essa  janela para o cinema negro, para a gente representa a consturção de um espaço de reflexão que vai além dos próprios filmes e que funda nosso pensamento sobre a prática curatorial. Diante de tantos apagamentos e de tantas ausências que a gente percebe em determinados festivais que lidam com processos curatoriais muitas vezes pautados por leituras e interpretações por sua vez organizadas em pensamentos e padrões estéticos narrativos que bebem muito de uma cultura eurocêntrica ou de uma cultura estadunidense,  para nós, curadoras, era muito importante esse trabalho de descentralizar e de decolonizar o olhar, pautadas num pensamento de que o estético pode e deve ser pensado também do ponto de vista políico".

Sobre a seleção, prossegue ela, era uma premissa pensar sobre o negligenciamento e sobre o apagamento de uma produção expressiva. "Assim, a gente pensou em uma seleção na qual fosse possível acolher a plularidade que a gente encontrou- e aí é muito importante também ressaltar e reafirmar que a identificação étnico-racial. Quando a gente fala de um cinema negro, não significa falar de opiniões e evidências que são homogêneas. Não são filmes que poderiam ser enquadrados dentro de uma mesma fórmula e categoria, estamos falando de uma pluralidade que, aliás, marca o próprio processo de curadoria dessa mostra: eu, Tatiana Carvalho e a Natalie, nós três olhamos para essas obras de lugares muito particulares também. Assim, construímos um processo de curadoria no qual cada visão e experiência e perspectiva de cada uma possibilitou construir um espaço de diálogo que é plural. Em termos de curadoria, a gente pensa de maneira coletiva e múltipla para esses filmes, a partir de nossas vivências distintas. Mas ao mesmo tempo que temos particularidades, a gente sabe que as nossas vivências estão imbricadas a algo que nos atravessa e que nos une na nossa condição histórica, de sermos três mulheres pretas. Assim, apesar das particularidades, ou com elas, a gente constrói um processo ue é múltiplo e que é coletivo e que expressa também muito do que são esses filmes em termos de pluralidade de abordagens, de apropriações da linguagem. Essa era uma outra questão que marcou a nossa seleção, abrir para essa pluralidade que a gente encontraria neste conjunto de filmes, já que  a gente está falando de opiniões e vivências que não são homogêneas, mas, sim, distintas, e que sim, existe algo que atravessa elas na condição histórica de esses realizadores serem negros e afrodescendentes".

Um terceiro ponto que era muito importante para a curadoria, e que Vanessa diz ter consciência de que o ato de curar é uma função privilegiada dentro da cadeia do audiovisual, uma vez que é um gesto de fazer circular e dar visibilidade a determinadas obras. "Cientes da importância de ocupar esse lugar e essa função de curadoria, a gente se perguntou a todo momento: curar o que? Pensando mesmo num processo curatorial que é, do ponto de vista crítico, conceitual; importante, mas que pode ser também um processo de cura. Então, esse conjunto de filmes com o qual a gente se deparou nos provocou a problematizar uma série de questões do ponto de vista crítico/conceitual. Assistindo a todos esses filmes, eles nos tocaram sobretudo a partir de três dimensões. A primeira é a existência afro-diaspórica desses sujeitos em um país como o Brasil, e daí vem um conjunto de filmes que a gente chama de experiências afro-diaspóricas. Uma outra questão que foi  suscitada na gente foi mostrar a importância de aquilombar-se, muito pensando no Abdias do Nascimento. Quando a gente fala o termo aquilombar-se, é num sentido de compartilhar laços de afeto como resistência, então, daí vem o segundo conjunto de filmes, Laços de Afetos e Vivência".

E uma terceira questão foi convidar para o visionamenteo de proposições de cura pelas imagens, " fabulando a nossa existência seja coletiva ou individual, para um futuro que já é aqui". "Então, mais que explicitar a desumanização que a gente vê constantemente na mídia, a gente viu, em vários filmes, um processo mesmo que é de cura, de cura das feridas, e de fabulação de uma existência possível e desejada". 

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