Reflexão

Dia da Consciência Negra: nem um passo atrás

Conquistas das pessoas pretas nos diversos campos das artes refletem a relevância e a força da produção cultural negra e devem ser celebradas

Por Bruno Mateus | @eubrunomateus
Publicado em 20 de novembro de 2022 | 13:09
 
 
 
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O legado do povo negro para a cultura e a formação da identidade brasileira é algo tão decisivo para os distintos campos das artes e do conhecimento que sem esse traço determinante o Brasil seria outro país – mais pobre culturalmente, sem dúvida, e menos vigoroso e diverso.

Neste domingo (20), Dia da Consciência Negra, data – a exemplo dos outros 364 dias do ano – propícia à reflexão sobre desafios e a necessidade de reparações históricas, é preciso também celebrar as conquistas das pessoas negras nas variadas áreas da cultura e do conhecimento.

A poeta, dramaturga, ensaísta, doutora em artes cênicas e professora Leda Maria Martins, da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG, considerada uma das principais pensadoras do teatro brasileiro, em especial das artes cênicas negras, faz questão de ressaltar que, se hoje podemos comemorar avanços e realizações, isso é resultado de séculos de “um trabalho fenomenal”, de uma produção e um pensamento que nunca deixou de acontecer, mas que encontrou, nos últimos anos, um espaço mais inclusivo para florescer.

Para Leda, é essencial realçar, sem deixar de ponderar as dificuldades, traumas e carências históricas, como o conhecimento advindo dos povos pretos foi e é extremamente relevante na formação cultural brasileira. Ao serem trazidos escravizados para as Américas, uma gama vasta de conhecimentos estéticos, artísticos, científicos, filosóficos e tecnológicos influenciou decisivamente todas as áreas do saber.

“Sempre houve a luta pela conquista da cidadania, da liberdade. O que temos visto nas últimas décadas são práticas pulsantes, potentes e que têm conquistado a sua presença seja como gestores, seja como criadores. Junto a isso, vem o alçamento das artes negras e indígenas e o como de processar suas criatividades, de pensar o país”, comenta Leda Maria Martins, finalista do Prêmio Jabuti deste ano com o livro “Performances do Tempo Espiralar, Poéticas do Corpo-tela” (Editora Cobogó, 2021) e vencedora, na semana passada, da categoria Aprender do Prêmio Milú Villela – Itaú Cultural 35 anos.

“Tenho ficado muito feliz com essa produção, que, a partir do âmbito das artes, provoca o status quo. Isso é extremamente relevante. São gerações de várias idades como protagonistas visando transformar o sistema”, completa a intelectual carioca radicada em Belo Horizonte.

A cantora, compositora e multi-instrumentista mineira Nath Rodrigues começou a trilhar seu caminho na música ainda na infância, em Sabará, na região metropolitana de BH, quando, no fim dos anos 1990, começou a estudar violão. A artista, que tem dois discos autorais lançados – “Fractal” (2019) e “Fio” (2022) – e também circula pelas artes cênicas, com participações nos espetáculos “Madame Satã” e “Zumbi”, afirma que, sim, o 20 de novembro deve ter tom de celebração, embora o Brasil seja “um país tão cheio de questões todos os dias”.

“Mesmo com o retrocesso ideológico que vivemos como sociedade nos últimos anos, não existe passo atrás. Uma vez que um grupo de pessoas pretas consegue gradativamente avançar e que a consciência antirracista é aberta, não tem como voltar. Devemos celebrar nossas conquistas nas artes, na educação, na tecnologia, que não acontecem de hoje, porque o povo preto brasileiro sempre lutou, nunca foi passivo”, enfatiza a cantora. Segundo Nath, “o desafio é cada vez mais trazer pessoas negras para essa possibilidade de abertura”.

Os festejos, Nath observa, são importantes porque revelam e enaltecem as conquistas das pessoas negras nos diferentes campos da cultura e criam uma narrativa que explicita o empoderamento, a beleza e a força da produção cultural negra por meio da poesia, da memória, do que é sutil e humaniza as pessoas pretas. O longa “Marte Um”, de Gabriel Martins, é, nesse sentido, um exemplo que merece ser reverenciado, ela frisa.

O filme tem diretor negro, protagonistas e elenco majoritariamente negros e foi escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar 2023. “O filme é muito poderoso, traz nosso modo de existir. Eu me vi várias vezes nele”, diz Nath Rodrigues. A cantora diz que todas as mudanças ligadas à negritude dependem também de oferta e um cardápio de possibilidades, da comida até a música: “Foi isso que mudou meu destino: oportunidade”.

Políticas públicas

As transformações sociais e os avanços na ocupação dos espaços culturais pelas pessoas negras estão intimamente conectados ao surgimento e ao fortalecimento, nas últimas décadas, das políticas públicas de inclusão voltadas à população negra, que representa 56% da sociedade brasileira, e de mecanismos de reparação histórica, como as cotas nas universidades.

Leda Maria Martins não deixa de destacar que essas ações afirmativas também são resultado das demandas e da luta da própria população negra. “As políticas não caem do céu, o status quo precisa ser interpelado, transformado, transtornado”, acredita.

Segundo levantamento do site Quero Bolsa, o número de estudantes negros no ensino superior cresceu quase 400% entre 2010 e 2019, totalizando 38,15% dos matriculados. Leda pontua que a maior presença de alunos pretos e pardos nas universidades representa, para além dos números, uma revolução em muitos aspectos: “O aluno negro na universidade demanda a mudança de postura da instituição na formatação dos currículos, a inclusão transforma as próprias universidades. Essa presença tem sido muitíssimo relevante, apesar de todas as dificuldades”.

Representatividade na passarela

Neste domingo (20), o estilista uberlandense Luiz Cláudio, criador da Apartamento 03, vai colocar na passarela um casting 100% negro para mostrar a nova coleção da marca no dia de encerramento da 54ª São Paulo Fashion Week. Não é a primeira vez que ele fará isso. Desde 2015, quando estreou na semana de moda paulistana e se sentia solitário no evento, ele participa de todas as edições da SPFW.

Nos últimos anos, porém, o estilista tem visto as coisas mudarem. Os avanços são lentos, ele sublinha, mas existem por mérito em duas frentes: na luta por ocupar um espaço que lhes pertence e pela qualidade da produção artística e intelectual das pessoas negras: “Temos que estar sempre forçando a porta. Vejo vários talentos negros na moda, muitas pessoas fazendo acontecer. Essa porta não se fecha mais, mas é bom frisar que ela só foi aberta porque nós a arrombamos para ocupar nosso espaço. Nosso trabalho sempre foi foda, mas também sempre foi inviabilizado pelo sistema racista”.

A luta racial chegou à moda, indústria predominantemente branca, e colocou na pauta a necessidade de a passarela refletir a sociedade brasileira. “Lidamos com imagem, vendemos uma ideia de beleza, e, se as pessoas pretas – modelos, estilistas, produtores, pessoas que tomam decisões – não estão representadas no mundo da moda, essa imagem não é real. A moda está mais inclusiva, e as pessoas estão entendendo essa leitura racial”, considera Luiz Cláudio.

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