A flexibilização da quarentena fez com que "Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou”, filme que marca a estreia da atriz Bárbara Paz na direção, chegasse presencialmente aos cinemas praticamente no mesmo momento em que é anunciado como a produção escolhida pelo Brasil para disputar uma vaga no rol dos indicados a melhor filme estrangeiro no Oscar 2021. Ambos os feitos, claro, inundaram Bárbara - e não só de alegria. Também da sensação de que o seu filme-poema, como ela descreve, a sua homenagem a um dos maiores cineastas brasileiros - Hector Babenco (Mar del Plata, Argentina, 1946 - São Paulo, 2016) - e  grande amor de sua vida está também falando à alma de muitas outras pessoas.

"É um filme que fiz para a tela grande, a vontade de mostrá-lo em uma sala é imensa, queria muito que as pessoas fosse assistir no cinema", diz ela, acrescentando, porém, ter consciência de que o medo da população ainda é grande. "Sei que a gente ainda está numa curva ascendente, mas os cinemas estão seguindo protocolos, com todas as especificações exigidas, ocupação de meia sala e todos os cuidados", pondera. 

Já em relação à escolha do filme como representante do país, Bárbara não esconde a emoção que a invadiu. "Em primeiro lugar, é uma honra, porque é o primeiro documentário da história do país a tentar uma indicação - e isso é muito forte. A gente tem uma produção tão maravilhosa (de documentários) e, até então, nenhum havia sido indicado. Eu sempre me perguntava por quê? Acho que isso (esse feito) abre espaço para muitas coisas. O fato de ser uma mulher (na direção), também. E penso que, de certa forma, também estou levando o Hector de volta para a Academia. Ele, que foi um maestro, muito respeitado lá, que levou o cinema brasileiro para o mundo.  Acho que é justo, merecido por ele, me emociona isso. Às vezes penso que é como se ele estivesse lá em cima, mexendo os pauzinhos".

A conversa nem precisa avançar muito para se notar as tantas vezes em que Bárbara Paz emprega a palavra "acho" ou similares. Em um mundo no qual tantos se veem como donos da verdade, chega a soar confortador se deparar com alguém que, mesmo já com tantos prêmios na bagagem logo na estreia na batuta, não se deixa levar pela vaidade. 

A carreira de "Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou”, vale lembrar, já começou  com chave de ouro, quando estreou mundialmente no Festival de Veneza de 2019, recebendo o prêmio de Melhor Documentário na Mostra Venice Classics e o Bisato D’Oro 2019 (prêmio paralelo, concedido pela crítica independente). Desde então, já foi selecionado para mais de 20 festivais internacionais. No início do ano, conquistou o prêmio de Melhor Documentário no Festival internacional de Cinema de Mumbai, na Índia. Também esteve no Festival do Cairo, Festival de Havana, Festival de Mar del Plata, Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Festival do Rio, Mostra de Tiradentes, Festival de Aruanda, Festival Internacional de Cinema Documental na Argentina, Baltic Sea Docs, na Letônia, e no Mill Valley Film Festival, nos Estados Unidos. 

"Na verdade, mesmo com a quarentena, 'Babenco' continuou circulando o mundo. Então, o filme não parou - eu é que parei! Fiquei dentro de casa, mas os festivais estavam acontecendo online. Há duas semanas, ganhamos o prêmio do Melhor Documentário no Festival de Viña Del Mar, no Chile, e na China, ganhamos um prêmio maravilhoso, num festival incrível, enorme, em Beijing. Eu estava acompanhando à distância. Então, pra mim, a quarentena não foi um desespero tão grande, e sim um momento de volta pra mim mesma. Tive esse tempo para saber o que eu queria, e para fazer aqui e agora. Não esperar mais nada para amanhã. Acho que muita gente teve essa mesma sensação que tudo poderia acabar - e acho que o filme fala disso também".

Construído em P&B, "Babenco" estrutura-se  a partir de um amálgama entre o homem Hector Babenco e a sua potente produção cinematográfica, que inclui filmes icônicos como "Pixote - A Lei do Mais Fraco" (1980), "O Beijo da Mulher Aranha" (1984), pelo qual foi indicado ao Oscar de Melhor Diretor, e "Carandiru" (2003), para citarmos alguns. Um homem que, em sua trajetória, trabalhou com nomes como Sônia Braga, William Hurt, Meryl Streep, Willem Dafoe (produtor associado de "Babenco"), Jack Nicholson, Raul Julia, Rodrigo Santoro e muitos mais. Era membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Numa análise mais ampla, Bárbara Paz diz que, na estruturação de seu filme, quis fazer o retrato "deste homem, deste pensador que se manteve vivo pelo cinema". "Tentei aceitar  que não poderia contar a vida inteira dele nem repassar a cinematografia inteira. Era um pedaço desse homem que eu conheci de perto. Um homem com o qual  vivi, pelo qual me apaixonei. Sempre quis que todo mundo escutasse o que eu estava escutando. E quis também que  fosse um filme de amor ao cinema", diz ela, emendando que sempre quis se desvencilhar do didatismo. "Queria um filme como um conto, sabe?  Não um documentário biográfico, não era isso, mas, realmente, um filme-poema".

Como o manancial que tinha em mãos era gigante, Bárbara optou por direcionar parte do material para um livro, "Mr. Babenco – Solilóquio a Dois Sem Um" (Editora Nós).  "Na montagem do filme foi onde descobri o que ia ficar e o que não ia, e o livro me ajudou a não ficar tão mal em relação a certas cenas que não entraram. Então, as pessoas vão poder comprar o livro e entender melhor uma passagem do filme, por exemplo". 

E a entrevista não poderia terminar sem que a cena em que Bárbara aparece dançando ao som de "Singing in the Rain" fosse citada. "Essa é, na verdade, a última cena do último filme dele, 'Meu Amigo Hindu', mas aconteceu na vida real. A gente estava na praia, estava chovendo, e eu comecei a dançar - porque eu adoro tomar banho de chuva. E dancei muito! Lembro que comecei a ir na direção dele. Ele estava protegido, debaixo da casa, meio com febre, e falou: 'Esse será o final do meu próximo filme, que eu não sei qual será'. E a partir dali começou 'Meu Amigo Hindu'. A partir dessa cena, que ficou muito marcada pra gente", narra. 

Bárbara conta que foi o próprio Babenco que, três dias antes da filmagem, avisou a ela que a música seria "Singing in the Rain". "Na verdade, eu estava ensaiando outra coisa, uma dança à la Pina Baush, uma coisa mais Grupo Corpo. De pronto, falei: 'Mas eu não sapateio'. Ele falou: 'Se vira. Você tem três dias, porque preciso acabar o filme com vida'. E a cena  está no documentário porque 'Meu Amigo Hindu' foi realmente a despedida dele do cinema, este entregar o bastão. Essa cena tem esse recado dele. No fundo, a gente sabia que seria a última cena de cinema dele".