Clássico

Edy Star e os 50 anos do disco com Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Miriam Batucada

Artista relembra histórias de 'Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10', álbum que colocou deboche, humor e crítica em todos os acordes

Por Bruno Mateus
Publicado em 05 de agosto de 2021 | 07:03
 
 
 
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Ao som de palmas, ovações e uma música circense de abertura, Edy Star ergue a voz e proclama, em alto e bom som: “Respeitável público, a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista pede licença para vos apresentar o maior espetáculo da Terra!”. Os quase 30 minutos que se seguem são de puro deboche, sarcasmos deliciosos e humor anárquico, mas também de experimentalismo, modernidade, ousadias e escrachos nunca antes vistos na música popular brasileira. Os jovens autores, um quarteto formado por Raul Seixas, Edy Star, Miriam Batucada e Sérgio Sampaio, realizaram uma obra irreverente e inovadora sob aspectos musicais e estéticos, mas que só foi reconhecida muito tempo após ter sido lançada. “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10” completa 50 anos neste 2021, e Edy é o único kavernista que sobrou para continuar contando a história. 

As gravações aconteceram em julho de 1971, e o disco foi lançado (dizem que apenas mil LPs chegaram ao mercado) nas semanas seguintes. Recebido com certa euforia por parte da imprensa, como a turma de “O Pasquim”, o álbum não alcançou sucesso comercial. Também pudera: a CBS, insatisfeita com seu funcionário Raul, pago para produzir discos, e não cantar neles, sabotou a produção, retirada de circulação pela própria gravadora. “Foi uma tristeza imensa, uma situação muito chata”, lembra Edy.

Raul adorava contar que tinha sido demitido da CBS por conta da travessura no estúdio, mas essa é apenas uma das lendas que cercam o álbum. Outra, de que o quarteto precisou gravar o disco às escondidas, é desmentida por Edy: "Não tem dessa. A gravadora sabia que estávamos trabalhando em um disco, não precisamos fazer nada escondido de ninguém. Ela só não sabiam como seria esse disco". O tal kavernista veio de uma prosa entre Raulzito e Sérgio Sampaio: eles falavam que a Terra seria destruída por uma bomba atômica e os sobreviventes viveriam em cavernas.

“Sociedade da Grã-Ordem Kavernista” ficou anos restrito ao universo underground até ser redescoberto e devidamente valorizado nos últimos 20 anos. Ainda assim, não chegou a ser popular como o grupo desejou. Em 2010, “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista” foi novamente relançado em CD pela Sony Music, mas encontrá-lo nas lojas é tarefa das mais difíceis. Hoje, quem quiser ter o álbum em casa terá de recorrer às grandes lojas virtuais e desembolsar em torno de R$ 200. O vinil pode chegar a R$ 600, mas a edição original, raríssima, custa R$ 1.900 no comércio eletrônico.

“Essa retomada foi muito importante até para as pessoas descobrirem um pedaço da história fonográfica brasileira”, pondera, para depois esbravejar: “Mas sabe uma coisa? A não ser o pessoal roqueiro, da psicodelia brasileira, os críticos não elogiam esse disco! Estou sempre atento, e ele nunca consta na lista dos cem melhores”.

O cantor, hoje com 83 anos, era amigo de Raul dos tempos de Salvador. Foi Raulzito, inclusive, quem pagou a passagem do ônibus que levou Edy da capital baiana ao Rio de Janeiro, onde chegou para integrar o time de artistas da CBS. Raul, depois, recrutou Miriam Batucada e seu amigo Sérgio Sampaio. “Não tínhamos nem começado a gravar e já estávamos pensando em uma ópera rock”, comenta o baiano, que refuta a ideia de que o disco é uma concepção única e exclusiva de Raul Seixas: “É uma coisa coletiva, ele não teria coragem de ter feito o disco se não fosse por mim e pelo incentivo do grupo”.

O que, sim, o artista ressalta é que “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista” é um marco importantíssimo na carreira do Maluco Beleza, ainda desconhecido do grande público, embora tenha estreado com “Raulzito e Os Panteras”, de 1968. “É a grande virada, o divisor de águas na vida dele. É a primeira vez que ele assina Raul Seixas”, sublinha. 

Cinquentenário

O disco é uma peça bem-humorada que usa o rock e o samba, o bolero e o chorinho, para criticar, com o desbunde próprio do início dios anos 70, símbolos da sociedade de consumo, como a televisão, e zombar do futebol e do Carnaval, duas das maiores paixões nacionais. A contracultura, o movimento hippie e os jovens não escapam das línguas venenosas de Raul, Edy, Miriam e Sérgio. Vinhetas hilárias aparecem entre as 11 faixas. “Eu comprei uma televisão a prestação, a prestação/ Eu comprei uma televisão, que distração, que distração!” achincalha o consumismo incentivado pela ditadura militar nos chamados “anos do milagre econômico”, que eram, na verdade, os anos de chumbo, a fase mais violenta do regime.

“Pra que pensar se eu tenho o que quero/ Tenho a nêga, o meu bolero, a TV e o futebol”, Raul canta no sambão “Aos Trancos e Barrancos”. “Esse disco é o Peter Pan, transborda juventude, é atualíssimo”, observa o kavernista.

Antes de “Todo Mundo Está Feliz”, o que se escuta é Sérgio Sampaio representando um repórter de voz engraçada. “Está no ar? Estamos aqui em plena Cinelândia gravando o programa. Vamos entrevistar um transeunte. Ei, você aí, ‘qualé’ o tipo de música que você prefere: melodiosa ou barulhenta?”, ao que Raul responde, com um risinho: “Barulhenta, né? Sou jovem”. Edy coloca voz no samba-canção “Sessão das 10”, que veio a ser gravada como um bolerão por Raul em “Gita” (1974), e na ótima “Eu Não Quero Dizer Nada”. “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista” é um grande disco: “Eu Vou Botar Pra Ferver”, “Eu Acho Graça”, “Soul Tabarôa” e “Dr. Paxeco” dão o recado.

O clima despudorado é tão grande que o disco termina ao som de vaias, assobios e um som de descarga, como se aquilo que acabaram de produzir fosse feito para ir pelo ralo. “Era tão deboche que é como se estivéssemos dizendo: ‘Fizemos uma merda, joga isso na privada’”, diverte-se Edy Star, cujas recordações remontam a tardes de estúdio e brincadeiras que o grupo fazia na rua a caminho da lanchonete: “Eu só penso como aquela época era boa, como vivi bons momentos, como éramos alegres, debochados, fazendo gozação de tudo”.

“Até hoje nunca ganhei nada com esse disco, ganhei fazendo shows”, diz ele ao Magazine. Depois de participar de “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista”, Edy Star, primeiro artista a se assumir gay publicamente no Brasil, lançou “Sweet Edy”, em 1974, e se envolveu cada vez mais com teatro e artes plásticas. De 1992 a 2014, morou em Madri. Pouco tempo depois de voltar ao país, reapareceu no mercado fonográfico com “Cabaré Star”, de 2017. 

Transgressor

Edy Star passa os dias em seu apartamento no Centro da capital paulista. Já tomou as duas doses da vacina contra a Covid, mora sozinho, não tem namorado, não faz shows há um ano e meio e lamenta que patrocinadores não tenham comprado a ideia de uma apresentação comemorativa aos 50 anos do disco – há dez anos, Edy tocou o álbum na íntegra em duas edições da Virada Cultural em São Paulo.

Ao responder sobre seus planos para 2021, Edy mostra intacto o espírito kavernista, transgressor, gargalha e diz, com voz escrachada e levemente rouca: “Estou preparando meu suicídio. Vou filmar e deixar o rolo para minha família vender e ganhar algum dinheiro”.

Bate-papo online

Edy Star fala sobre os 50 anos de “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10” nesta quinta-feira (5), às 19h30, em mais uma edição do “Buteco ao Lado”. O programa será transmitido pelo canal do A Hora do Dinossauro no YouTube.

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