Quando se trata de um talento da estatura de um Ennio Morricone, o sentimento de luto por sua partida (o italiano estava internado após ter caído e fraturado o fêmur) ultrapassa as barreiras de sua terra natal para ser vivenciado mundo afora - em particular, por todos os amantes da sétima arte. Falecido nesta segunda-feira, aos 91 anos, o compositor italiano fez mais do que deixar um legado ímpar na seara das trilhas sonoras para o cinema: falou ao coração das pessoas, pontuando, com precisão, narrativas dos mais diferentes gêneros, seja sob a batuta de Sergio Leone, de Giuseppe Tornatore, de Rolland Joffé ou de Quentin Tarantino, para citar alguns dos diretores com os quais firmou parceria..
Antes de discorrer sobre o talento inegável do romano, o jornalista e escritor Fernando Righi lembra que os filmes "têm o poder mágico de criar associações entre cenas célebres e fatos corriqueiros". "E se a cena contar com uma música poderosa então... Solfejos e assobios completam a paródia, que sempre termina numa gargalhada ou num riso irônico de canto de boca. Quem correndo na praia deixa de lembrar-se do tema do Vangelis, em 'Carruagens de Fogo?' Ou do tema de ET, pedalando na bicicleta? A trilha sonora dos filmes está presente nas nossas recordações mais do que imaginamos", comenta, para, em seguida, lembrar: "Um mestre desses temas foi Ennio Morricone"..
O compositor e poeta Murilo Antunes, que já letrou a música de "Cinema Paradiso" (1990), foi outro dos que lamentaram a partida do gênio, ressaltando a honra de ter "virado um parceiro de Morricone". Ele refere-se à ter letrado o tema principal do filme de Giuseppe Tornatore, que, assim, se tornou "Paraíso", registrada com maestria por Flávio Venturini. "Assisti ao filme umas quatro vezes, e, em todas, chorei, então, tinha que colocar essa emoção para fora. A música é belíssima, e eu, como compositor, eu fico buscando pérolas por aí, além das feitas por meus parceiros. E como adoro cinema... A verdade é que considero Morricone um dos maiores fazedores de trilhas sonoras, assim como Nino Rota, contemporâneo dele", diz.
Antunes conta que neste último domingo, por coincidência, estava revendo "Era Uma Vez no Oeste". "E estava comentando isso, sobre a beleza e a exatidão da trilha dele, assim como em 'Era uma Vez na América' e em vários outros filmes. Pessoas como ele, John Willliams, Henry Mancini... São espetaculares. Como Michel Legrand, também, que eu adoro. Autores de trilhas extremamente bem feitas e que têm os temas centrais melodiosos, líricos - ou, no caso de 'Era Uma Vez no Oeste', muito bem arranjados, com os instrumentos corretos. Foi um dos maiores que a humanidade já teve, especialmente no campo do cinema, que foi o no qual optou por mostrar sua competência e talento", completa Murilo.
Justamente por conta do ecletismo e da competência do italiano, o crítico de cinema Fábio Leite evita citar uma trilha ou composição de Morricone em particular que o tenha impactado mais. "Não saberia escolher uma entre tantas. Prefiro falar da primeira que chamou a minha atenção para o nome dele: o tema de 'O Bom, o Mau e o Feio/Três Homens em Conflito', filme de 1966, dirigido pelo seu compatriota Sergio Leone. O que me deixou impressionado foi aquela mistura inusitada de assobio, flauta, gaita, guitarra (com “trêmolo”), coro, vozes distorcidas, naipe de metais... O que não era muito comum em western, gênero que se servia mais de orquestras convencionais e de uma música imponente", pontua. "Àquela época, Morricone já havia feito umas 20 trilhas, mas essa foi a primeira que me interessou ouvir para além do filme", conta ele, que inclusive chegou a, alguns anos mais tarde, comprar um LP com “O Melhor do Bang Bang à Italiana”.
"Nunca uma trilha me pegou tanto quanto a hora em que o Charles Bronson põe a gaita na boca e toca quatro notas no começo de 'Era Uma Vez no Oeste', diz, por seu turno, o músico Paulo Horta. Fábio Leite lembra ainda que, com a trilogia “Por Um Punhado de Dólares”, “Por Uns Dólares a Mais” e “Três Homens em Conflito”, Leone e Morricone lançaram o chamado "faroeste pop", "antes mesmo de Arthur Penn, Sam Peckinpah e outros diretores norte-americanos que repaginaram o gênero".
Também crítico de cinema, Fernando Fonseca complementa. "Ennio Morricone marcou demais a minha vida. As trilhas que compôs para faroestes e dramas, nossa, são inesquecíveis. A de 'Era uma Vez no Oeste', muito marcante. O cara foi um gênio, não houve melhor compositor que ele para o cinema. E vale destacar que elas (trilhas e composições) prescindem dos filmes, são maravilhosas de se ouvir, têm vida própria".
Idealizador do festival Musimagem, direcionado às trilhas sonoras e realizado no CCBB BH há mais de cinco anos, o compositor e pianista Marcos Souza (filho de Chico Mário) também salienta esse poder de a música de Ennio Morricone existir para além do filme. "Quando você escuta, lembra do filme, de com quem estava no cinema, de uma época. Isso mexe muito com a gente. Remete ao filme diretamente ou à sua própria vida, à sua própria trilha sonora. 'Cinema Paradiso', para você ter ideia, foi a trilha com a qual entrei no meu casamento, então, é uma música que me marca muito, que tem uma imagem que saiu da tela e criou vida própria. Uma das cenas mais emocionantes a que já assisti na minha vida é é a de quando o personagem Totó (nesta cena em particular, vivido por Jacques Perrin) assiste às várias cenas de beijo (que, nos recortes temporais anteriores mostrados pelo filme, eram censuradas pelo pároco da cidade sicilaian) com aquela música. Realmente, um dos maiores compositores de todos os tempos", homenageia. "Aquela melodia do filme 'A Missão' também é maravilhosa", adiciona.
Editor da revista eletrônica Zint, direcionada à produção de textos críticos sobre o mundo da Arte e Entretenimento, o jornalista João Dicker foi outro a lamentar a partida do compositor. "Morricone foi o responsável por me mostrar, ainda quando comecei a estudar cinema, a verdadeira força e o impacto de uma trilha em um filme. Logo quando soube de sua morte, fiquei muito triste e me programei para reassistir a dois dos filmes em que o trabalho genial dele mais me impacta: 'Era Uma Vez no Oeste' e 'Era Uma Vez na América', ambos de Sergio Leone, grande parceiro dele. Gosto de lembrar desses dois trabalhos em especial porque o que ele fez no 'Era Uma Vez na América' dá um tom romântico e lírico inovador no que ele, junto a Leone, já fazia". Já a trilha do "Era Uma Vez na América” soa na contramão dessas característica para Dicker, "caminhando para uma beleza oposta, mas ainda assim tão linda, que chega a uma melancolia importantíssima para o filme como um todo", analisa. "Lendo sobre algumas manifestações em sua homenagem, assim como a comentários sobre ele, me deparei com uma frase do Leone que me encheu de lágrimas: 'Eu sempre digo que meu melhor roteirista é Ennio Morricone. Porque, muitas vezes, é mais importante uma nota ou uma orquestração do que uma linha de diálogo'. De fato, Morricone sempre imprimiu uma outra dimensão a qualquer filme do qual tenha participado", opina.
Jornalista, escritora e produtora, Malluh Praxedes é outra a eleger a trilha sonora de "Cinema Paradiso" como a obra de Morricone que mais a impactou. "Sem dúvida é a mais perfeita 'combinação'! Ouvir a trilha uma, duas, cem vezes é relembrar cada cena, cada emoção de um filme único. A parceria do Morricone com Tornatore é poesia embalada pela mais bela música", entende.
Sobre este filme em particular, Fernando Righi aventa: "O que seria de 'Cinema Paradiso' sem o tema delicado que acompanha o itinerário da memória de Totó?". Mas o escritor também recorda do tema de “O Bom, o Mau e o Feio”. "Metade do mundo o conhece. É sempre evocado quando o assunto é um desafio insolúvel que se apresenta. Quem vai sacar primeiro? Como poucos, Morricone sabia combinar as melodias que criava com as imagens dos filmes, dando outra vida ao produto final".
Como Fábio Leite, para Righi, o toque ousado do mestre foi além de seus contemporâneos, ao, por exemplo, misturar a orquestração clássica com instrumentos regionais bizarros. "Gaitas, ocarinas, estranhas percussões, assovios solitários, ruídos, gritos. A imaginação dele era ilimitada, como os planos abertos do amigo de infância Sérgio Leone. O resultado não poderia ser outro – um estilo único e logo reconhecido". Nos filmes policiais, prossegue Righi, Morricone procedia da mesma forma. "Na abertura de 'Os Intocáveis', combinou percussão, fagote, cordas e gaita, e, em 'Os Sicilianos', o som de molas faz o contracanto ao assovio melancólico dos trágicos heróis representados por Jean Gabin e Alain Delon.
O resultado final são músicas de uma textura única. Inédita".
Não por outro motivo, considera Morricone "parte de uma época de ouro no cinema, ao lado de Maurice Jarre, Nino Rota, Bernard Hermann, John Barry e John Williams". "Todos grandes mestres, mas sem aquele elemento estranho e surpreendente de Morricone, que fará muita falta numa terra que insiste em se tornar chata".
Marcos Souza finaliza: "Com a partida dele, as imagens perdem a referência de um dos maiores compositores para imagens, um mestre que deixe um legado importantíssimo. Quem quer entender como é que funciona o 'áudio' do 'audiovisual', para quem quer tentar compreender o que a música é capaz de fazer num filme.... Se mergulhar na obra do Ennio Morricone, vai entender perfeitamente", encerra.