Centenário Clarice Lispector

Em homenagem à autora, Autêntica lança coletânea com recriações de contos

Feliz Aniversário, Clarice convidou 27 escritores, entre nomes consagrados e inéditos, de vários estados, para revisitar a obra Laços de Família

Por Patrícia Cassese
Publicado em 10 de dezembro de 2020 | 07:42
 
 
 
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Nesta quinta-feira, quando o campo literário celebra, mundo afora, o centenário de nascimento de Clarice Lispector  (1920-1977), chega ao mercado a coletânea de contos "Feliz Aniversário, Clarice" (Autêntica). Organizado pelo mineiro Hugo Almeida, o livro reúne 27 autores (12 mulheres) de vários estados, do Rio Grande do Sul ao Pará, nascidos desde a década de 1920 até a de 1990, que escreveram contos inspirados em "Laços de Família". Há escritores consagrados, outros em ascensão, em início de carreira e inéditos - Minas está presente com 12 nomes.

A faixa etária também é variável: a caçula da coletânea é a gaúcha Bruna Brönstrup, 25, que, como lembra o material da editora, é inédita em livro. Ao lado dela, estão nomes como o da escritora e tradutora paulistana Anna Maria Martins, 96, ou dos também paulistas Álvaro Cardoso Gomes, Jeosafá Fernandez Gonçalves, Mafra Carbonieri e W. J. Solha (há quase 60 anos radicado na Paraíba). "Feliz Aniversário, Clarice" registra, ainda, a participação dos  baianos Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio Leya de 2018 com o romance "Torto Arado" e do Jabuti 2020 com o mesmo título; e Valdomiro Santana; do tocantinense Jádson Costa Neves; da paraibana Marilia Arnaud; da pernambucana residente na Inglaterra Marta Barbosa Stephens; da paraense Mayara La-Rocque; do piauiense Raimundo Neto; do carioca residente em São Paulo Rodrigo Novaes de Almeida; e do maranhense radicado em Brasília Ronaldo Costa Fernandes.

Os representantes de Minas são: Ana Cecília Carvalho (autora de “O Preço do Silêncio”, a partir de “A Imitação da Rosa”), Beatriz de Almeida Magalhães (“A Menor Mulher do Mundo” com o título de “A Maior Mulher do Mundo”), Francisco de Morais Mendes ("Fora de Época", inspirado em “Mistério em São Cristóvão”), Guiomar de Grammont (“Noite de Maio”), o próprio Hugo Almeida ("O Canto de Clarice", baseado em “Feliz Aniversário”); Jeter Neves (“Observação de Aves segundo F.H.”, a partir de “O Crime do Professor de Matemática”). Por último, mas não menos importante,  Letícia Malard (“A Neta”) e Ronaldo Cagiano (“Delírios e Divagações da Miúda”) recriaram “Devaneio e Embriaguez Duma Rapariga”. E tem, ainda, Lino de Albergaria, Tarisa Faccion (inédita em livro), Sandra Lyon  e Stella Maris Rezende. 

A Autêntica, vale lembrar, já havia publicado, em 2018, "O Rio de Clarice", um passeio afetivo pela cidade, de Teresa Montero. E, em 2007, "A Hora da Estrela de Clarice", de Sérgio Antonio Silva. Confira, a seguir, um bate-papo com o organizador Hugo Almeida.

Como surgiu a ideia dessa empreitada? Em 2016, organizei e publiquei a coletânea "Nove, Novena: Variações" (Editora Olho Dágua), para marcar os 50 anos da primeira edição de "Nove, Novena" (1966), narrativas de Osman Lins (1924-1978), um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Ele havia organizado, em 1977, "Missa do Galo – Variações Sobre o Mesmo Tema", em homenagem a Machado de Assis, reunindo textos de Antonio Callado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e dele mesmo. Portanto, devo a ideia a Osman Lins. Como ficcionista, penso que o centenário de nascimento de Clarice Lispector, nossa maior escritora, merecia um livro inspirado em "Laços de Família", de 1960. Cem anos da autora e 60 do seu mais expressivo e harmonioso volume de contos, todos antológicos. Por isso resolvi organizar "Feliz Aniversário, Clarice", ideia apresentada à editora Rejane Dias, da Autêntica, que apostou no livro desde o primeiro momento, quando havia apenas um conto pronto e uma lista de autores a ser convidados.

Que critérios nortearam a escolha dos autores participantes? Alguns deles participaram de "Nove, Novena: Variações", principalmente os mineiros. A homenagem a Osman Lins reuniu dez autores (um dos contos tem duas novas versões). Pensei em dois textos inspirados em cada um dos 13 de "Laços de Família". O conto “Feliz Aniversário” acabou tendo três versões, uma delas minha. Por isso são 27 autores. Entre os incontáveis ótimos escritores brasileiros, procurei reunir contistas de vários estados e idades, bem como de concepção literária diferente. Claro que muita gente boa não está na coletânea, não caberiam uns 100 autores. Mas penso que os ficcionistas presentes em "Feliz Aniversário", Clarice dão uma ideia da riqueza da literatura brasileira atual. O principal critério foi a diversidade em vários aspectos. Há autores consagrados, outros em ascensão ou início de carreira e duas inéditas. São15 escritores e 12 escritoras nascidos em todas as décadas do século XX, a partir dos anos 1920. A caçula, Bruna Brönstrup, de Porto Alegre, tem 25 anos, e a mais velha, Anna Maria Martins, de São Paulo, completou, em novembro, 96, em plena atividade intelectual. Em geral, procurei distribuir os contos inspiradores de acordo com as características e os temas mais frequentes na obra de cada autor. Acredito ter acertado na maioria das vezes. Pelo menos ninguém se queixou.

No geral, como os convidados conduziram suas escritas?  De pronto, todos aceitaram o desafio de recriar o conto que escolhi de "Laços de Família". A maioria foi fiel aos princípios da ficção de Clarice Lispector destacados pelo professor e crítico literário Alfredo Bosi em seu livro "História Concisa da Literatura Brasileira": “o uso intensivo da metáfora insólita, a entrega ao fluxo da consciência, a ruptura com o enredo factual”. Há contos intertextuais, como os próprios autores afirmam em depoimentos (“Gênese dos Contos”) incluídos no livro. Alguns conheceram Clarice e relembram o inusitado, a magia desses encontros, sobretudo a mineira Letícia Malard.

Ou seja, todos trabalharam sob total liberdade...Sim, claro. Só entendo literatura e arte com liberdade. Liberdade ampla, total e irrestrita. Havia apenas uma condição: que o conto fosse inspirado em um de "Laços de Família. Quis, na medida do possível, que uma recriação fosse feminina e outra masculina e de autores de idade e estados distantes. A maioria está dentro dessa ideia, e há resultados surpreendentes, com versões bem diferentes, até opostas, de um mesmo conto. Exemplo: as inspiradas em “O Búfalo”. Em um conto, a ênfase é o amor. No outro, o horror. Mas amor e horror estão no texto da Clarice.

Gostaria que falasse sobre a sua relação com a obra de Clarice e, em particular, sobre "Laços de Família". Na suas opinião, que características fazem com que esse seja considerado um dos livros mais potentes da autora? Clarice Lispector é admirada e amada, por mil razões, por boa parte dos escritores brasileiros da minha geração e das novas também. Para muitos, ela é mestre e guia. Sua obra é admirável, inquietante, original desde a estreia, aos 23 anos, com o romance "Perto do Coração Selvagem", que encantou críticos como Antonio Candido, até "A Hora da Estrela". No livro que citei, Alfredo Bosi lembra que Clarice Lispector manteve-se “fiel às suas primeiras conquistas formais”. Nádia Battella Gotlib, a maior estudiosa da vida e obra de Clarice, afirma que a escritora se concentra “no registro de labirintos da intimidade de suas personagens, atenta a detalhes patentes na vida cotidiana, como nos laços de família e em experiências mais complexas”. Além de "Laços de Família", que por coincidência faz seis décadas de publicação no mesmo ano do centenário de nascimento da autora, outros volumes de contos de Clarice são magistrais, como "A Legião Estrangeira", "Felicidade Clandestina" e "Onde Estivestes de Noite". Em carta a Clarice, em 1961, o escritor gaúcho Erico Verissimo (1905-1975) disse o seguinte sobre "Laços de Família": “Não escrevi antes sobre seu livro de contos por puro embaraço de lhe dizer o que eu penso dele. Aqui vai: é a mais importante coletânea de contos publicada neste país desde Machado de Assis”. Então, "Feliz Aniversário, Clarice" celebra duas grandes datas da literatura brasileira. A exemplo do que ocorre nos contos inspiradores, inquietação, dor, mistério, amor, inveja etc. atravessam as narrativas do livro. Como escrevi na apresentação dele, eu e os demais participantes da coletânea esperamos que o nosso trabalho tenha resultado digno da autora de "Laços de Família". E estamos muito felizes porque a Nádia Gotlib (uma das maiores autoridades em Lispector) diz, na orelha, que fomos bem-sucedidos no desafio de reinventar os contos de Lispector.

Nota da redação: O organizador Hugo Almeida é formado em Comunicação pela UFMG em 1976, doutorado em Literatura Brasileira pela USP em 2005, com tese sobre Osman Lins. Tem vários livros publicados, entre eles o romance "Mil Corações Solitários" (Prêmio Bienal Nestlé-1988) e os infantojuvenis "Porto Seguro, Outra História" e "Viagem à Lua de Canoa" (PNBE-2011). Almeida organizou "Osman Lins: O Sopro na Argila" (ensaios, 2004) e "Nove, Novena: Variações" (contos, 2016).

"Feliz Aniversário, Clarice" - Contos inspirados em "Laços de Família" (editora Autêntica, 272 páginas, R$ 49,90). Organizador: Hugo Almeida

 

 

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