Entrevista

Em novo livro, Frei Betto faz leitura crítica da conjuntura do Brasil atual

O Diabo na Corte, lançado em março, analisa o país após as eleições de 2018; escritor diz que quarentena chega a ser 'um luxo' diante dos quatro anos que ficou preso durante a ditadura

Por Bruno Mateus
Publicado em 14 de abril de 2020 | 17:54
 
 
 
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Frade dominicano, escritor, jornalista e militante de movimentos pastorais e sociais, Frei Betto – chamado assim há tanto tempo que o nome de batismo Carlos Alberto Libânio Christo é mera e inútil formalidade – costuma dedicar páginas e páginas em livros e jornais a análises e leituras de conjunturas políticas e sociais do Brasil. Esse é o mote de "O Diabo na Corte – Leitura Crítica do Brasil Atual" (Cortez Editora, 216 páginas, R$ 39,00), lançado em março. Em pouco mais de 200 páginas, Frei Betto reúne artigos que pensam o país a partir da eleição de Jair Bolsonaro, em novembro de 2018.

Filho do jornalista Antônio Carlos Vieira Christo e da escritora e culinarista Maria Stella Libânio Christo, Frei Betto herdou da família a paixão pela literatura, sentimento aguçado por ele dia após dia. O religioso se diz um escritor compulsivo e já trabalha em futuros projetos. “Escrevo em qualquer lugar”, ele conta. São 68 livros publicados desde 1971, quando estreou com “Cartas da Prisão". Nesse período, ele venceu o Prêmio Jabuti duas vezes.

Passando pela quarentena no convento em São Paulo, onde mora há mais de 40 anos, Frei Betto tem se dedicado a trabalhar, mas também reserva um tempo para os exercícios físicos matinais, a leitura e a música, principalmente a popular brasileira, o jazz e a clássica. Com humor e ironia, ele diz, nesta entrevista ao Magazine, que o período confinado em casa é um luxo para quem esteve preso por quatro anos pela ditadura militar. Confira abaixo os principais trechos da conversa.

Como você tem adaptado sua rotina à quarentena e o que tem feito para driblar as armadilhas do tédio durante o confinamento?

Estou fazendo o que gosto: faço exercício durante a manhã, tomo meu banho, depois leio, escrevo, medito. Estou levando numa ótima. Para quem ficou quatro anos preso na ditadura, de 1969 a 1973, isso aqui é um luxo. Passei por oito prisões diferentes e dessa experiência nasce, por exemplo, meu livro "Batismo de Sangue". Também estou me envolvendo com projetos literários que estavam parados. Moro em São Paulo, no convento dos frades dominicanos, desde 1977, e daqui não quero sair. Escuto muito música, principalmente música popular brasileira, jazz e música clássica – Mozart, Vivaldi, Strauss...

Já está pensando em uma próxima publicação?

Estou sempre trabalhando em dois ou três livros, mas tenho um princípio: só falo sobre eles quando eu termino. Se falar antes, dá um azar danado. Estou cansado de ver escritor de balcão de bar que fala sobre projetos que depois não dão em nada. Trabalho em silêncio, sou mineiro em muitos sentidos, inclusive nesse.

Qual é a sua leitura dessa atual crise – econômica, política, social e humanitária – e o que ela deixará para a curto e médio prazo? Você é otimista quanto ao futuro?

Tenho debatido com amigos pelos WhatsApp. Realmente torço para que a pandemia dê uma virada mais positiva no rumo humanidade, mas confesso que não sou tão otimista como eu gostaria. Uso muito uma frase: "Guardemos o pessimismo para dias melhores" (risos). Sempre fui um cara otimista, mas diante dessa crise… A crise não será suficiente para pôr fim a essa cultura hegemonizada pelo capitalismo, de que o capital privado é mais importante que os direitos humanos. Claro que os Estados, e não é o caso do Brasil, cuidarão de ter mais proteção social. Também prevejo que as empresas vão descobrir que esse negócio de as pessoas trabalharem em casa é uma enorme maneira de pouparem capital, e milhões de pessoas que todo dia saíam de casa para ir às redações, fábricas, escritórios não vão sair mais, vão ficar em casa, transformando o próprio lar em local de trabalho. Isso vai significar um ganho enorme para a acumulação do capital. Prevejo um cenário de desgaste das relações de trabalho. Por outro lado, os países vão ter que ter políticas sociais, porque sabem que uma pandemia pode surgir outra vez

Você lançou seu livro mais recente no mês passado – "O Diabo na Corte". Afinal, quem é essa figura? Ou são muitos?

O livro quase todo trata da eleição do Bolsonaro, da composição do seu ministério. O primeiro texto é uma parábola chamada “O Diabo na Corte”. Como toda parábola, cada um tira suas conclusões sobre o que estou falando. Para bom entendedor, meia palavra basta (risos). Assim como meus dois últimos livros ("A Mosca Azul" e "Calendário do Poder"), é um livro de análise da conjuntura política brasileira.

Em um texto para a divulgação do livro, você diz que "O Diabo na Corte" analisa a reviravolta ocorrida no Brasil a partir da campanha eleitoral de 2018 e a eleição de Bolsonaro”. Que reviravolta foi essa?

Digo reviravolta porque foi uma eleição, tanto do ponto de vista dos analistas quanto das pesquisas feitas antes da suposta facada que Bolsonaro levou, que ninguém previa que ele pudesse ser eleito. Então, realmente, foi uma reviravolta total. Isso está analisado no livro.

Na sua percepção, a que se deve a ascensão e vitória de Jair Bolsonaro?

Digo sempre que a extrema direita saiu do armário, ela sempre existiu. A elite brasileira é uma elite de direita, que hoje pressiona Bolsonaro para suspender o isolamento, o capital e o sistema capitalista falam mais alto que os direitos humanos. A elite se aproveitou porque durante os 13 anos o PT, apesar de todos os méritos, deixou de fazer educação política do povo, perdeu uma oportunidade histórica de fazer esse trabalho - e me incluo nisso, porque fiz parte do governo Lula no início do Fome Zero. Criamos uma sociedade de consumistas, não de cidadãos protagonistas. O governo primou pelos bens pessoais, não pelos bens sociais. As bases da esquerda e o trabalho que os movimentos progressistas fizeram nos anos 80 e 90 não foram prosseguidos. Criou-se um vácuo ocupado pelas igrejas evangélicas conservadoras, através dessa religiosidade manipulada no sentido conservador. Nosso povo pensa pelo coração, no Brasil é isso. E a porta do coração é a religião, eles souberam manipular isso muito bem. Para ser eleito, ele contou com um esquema de algoritmos muito poderoso, inclusive recebi dois telefonemas com voz de brasileiros fazendo campanha para ele. Depois descobri que um telefonema veio dos Estados Unidos e outro de Portugal. Por outro lado, Bolsonaro soube explorar muito bem o sentimento antipetista e também o sentimento religioso do povo, a partir do apoio das igrejas evangélicas conservadoras - coloco esse adjetivo porque nem todas são. Bolsonaro se aproveitou da questão do mito, do avatar, de alguém que viria sanear o Brasil de toda e qualquer corrupção. Hoje, o que a gente mais encontra é eleitor dele arrependido.

Você também aborda a composição do ministério bolsonarista... 

Essa hegemonia militar que existe no poder executivo se deve a dois fatores: a incapacidade de Bolsonaro de fazer negociação política com o Congresso e com os governadores, e isso o fragiliza muito; da parte dos militares, esse convite é bem aceito porque eles estavam no limbo pelas atrocidades cometidas durante 21 anos na ditadura, foi a oportunidade que eles viram para voltar ao poder, eles perderam a vergonha de vestirem a farda. Sem dúvida nenhuma, eles não são ingênuos, mas não querem instalar uma instabilidade. Internacionalmente, o Brasil está mal na foto. Bolsonaro continua presidente, mas quem decide e quem dá as cartas são os militares que estão no Palácio do Planalto. O descaso dele com o coronavírus se deve a seguinte lógica: morrendo idosos, menos gasto na previdência; morrendo vulneráveis, menos gastos nos SUS, e morrendo pobres, menos investimento social.

Na sua análise, qual é o caminho do governo de Jair Bolsonaro? 

O caminho desse governo é estar atolado, Bolsonaro não tem condições de levantar a economia com o coronavírus. Ele vai ficar nesse "atoleiro" durante quatro anos, pode até ser que no meio do caminho ele seja levado a renunciar. Ele vai se arrastar com uma crise econômica brutal, até pelo reflexo de uma conjuntura internacional. É um governo que dá cabeçadas, dispensa oposição – eles mesmos promovem o auto-desgaste.

Você dedica alguns capítulos do livro à questão ambiental e da Amazônia. A política ambiental do governo brasileiro te preocupa?

A política do governo é desastrosa, não tem sensibilidade. É a opção do capital acima da natureza, essa é a lógica deles. Por isso ficaram tão preocupados com o Sínodo da Amazônia, mas tiveram que engolir porque tinha a figura respeitada do papa. O descaso com a Amazônia continua. Ele queria transformar reserva ambiental em área de turismo, além de ter conseguido cancelar as multas que recebeu do Ibama. Tudo isso desgasta a imagem do governo no mundo inteiro, mas parece que eles não percebem isso.

Voltando a sua carreira literária, você transita por diferentes gêneros literários – crônica, romance, infanto-juvenil, ficção e não-ficção, e já lançou quase 70 livros – 68 para ser mais exato. Em que medida o ambiente familiar influenciou sua carreira nas letras?

Nasci e cresci em uma casa com livros por todos os cômodos. Éramos oito irmãos, não havia cômodo com condições de ser biblioteca. Depois, à medida que fomos saindo de casa, meu pai pôde fazer a biblioteca dele. Era livro para tudo quanto é lado e isso me despertou desde muito cedo a vontade de ser escritor. No início do curso primário, hoje chamado fundamental, a professora ressaltava na sala minhas redações, me citava como exemplo. Eu queria ser jornalista, então o primeiro curso que ingressei foi o jornalismo, mesmo antes de ser frade. A literatura sempre foi minha paixão. Sou compulsivo, dou um jeito de escrever em qualquer lugar, até na fila do banco. Sempre escrevo à mão e depois passo para o computador. Minha letra é horrível.

Quando o caminho da religiosidade entra na sua vida?

Ainda muito jovem, aos 13 anos, ingressei na juventude estudantil católica, em Belo Horizonte, um movimento progressista que fazia alianças com a juventude comunista para derrubar o pessoal da direita. Éramos orientados pelos frades dominicanos, que tinham uma concepção bem progressista do Cristianismo, e mais tarde veio a ser chamada de Teologia da Libertação. Essa presença dos dominicanos foi uma coisa que me marcou muito. A inquietação vocacional (para a religião) surgiu quando entrei para a faculdade de jornalismo. Resolvi interromper o curso para fazer a escolha da vida religiosa, mas nunca deixei de trabalhar como jornalista.

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