Iacanga, que, em tupi-guarani, significa “olho d’água”, é uma pacata cidade localizada a 376 km de São Paulo. Em janeiro de 1975, o cotidiano das 5.000 pessoas que então habitavam o município foi alterado por um evento musical que reuniu milhares de jovens em busca de liberdade e rock ‘n’ roll.
Foi ali, mais especificamente na Fazenda Santa Virgínia, que aconteceu o Festival de Águas Claras. Antonio Checchin Jr., o Leivinha, tinha 22 anos quando teve a ideia de realizar um evento ao ar livre na fazenda de sua família. O que ele não sabia, porém, é que aquilo se transformaria em um importante capítulo da cultura brasileira.
Para que o conceito saísse do papel, Leivinha, com a ajuda de amigos, precisou correr atrás de praticamente tudo – de fazer contato com as bandas a elaborar estratégia de divulgação – que, diga-se, só foi liberado pelas autoridades (a ditadura ainda vigorava) dias antes da data marcada para a abertura. “Eu me sentei com o delegado e assinei o documento. ‘Você não vai ler?’, perguntou ele. ‘Se eu ler, não assino’, respondi’”, diverte-se Leivinha.
Com um espírito que emulava Woodstock, o evento se estendeu por três dias, em que homens e mulheres, em meio ao desbunde característico daqueles tempos, impuseram sua vontade de viver em um mundo menos repressor e, com a rebeldia necessária às revoluções comportamentais, desafiaram o conservadorismo vigente em meio ao regime militar.
Hollywood Rock
A centenas de quilômetros dali, no Rio de Janeiro, outro importante movimento se armou no campo do Botafogo naquele janeiro. Durante quatro fins de semana, o Hollywood Rock abriu portas para uma nova ideia de juventude. “Eu queria porque queria fazer aquilo. Desde Woodstock, todo mundo passou a sonhar com um grande evento de rock no Brasil. Tenho muito orgulho do que fiz”, relembra Nelson Motta, produtor da primeira edição do festival.
Quarenta e cinco anos depois, ambos os episódios remontam a um período em que eventos culturais espelhavam o espírito de uma época. “A energia de Iacanga me marcou muito. As pessoas se respeitavam, era um resumo da sociedade com tolerância e sem a hipocrisia que reinava lá fora”, conta Leivinha.
Responsável pelo som e integrante da equipe que ajudou a colocar o Festival de Águas Claras de pé, o produtor musical Pena Schmidt, que também esteve nos bastidores do Hollywood Rock, diz que os dois momentos inserem o jovem brasileiro daquele período num contexto global e planetário. “A gente queria experimentar a mesma coisa que os caras estavam vivendo lá fora”, comenta.
O produtor cultural Claudio Prado ajudou a conceber a ideia de Águas Claras e atuou na coordenação de palco do festival. “Foi um barato, sobretudo porque não existia esse modelo”, afirma. Para ele, o que se viu no interior paulista foi uma experiência muito forte para além da música. “O mais interessante era o público. Você podia fumar maconha, tomar ácido e andar pelado no sentido político da questão. Foi uma experiência no sentido verdadeiro que a cultura tem”, afirma.
Além disso, Prado diz que a ideia de contracultura no Brasil é inaugurada naquele janeiro de 75: “Essa palavra passou a existir a partir das coisas que estávamos fazendo”.
Em Iacanga...
Entre 17 e 19 de janeiro, o Festival de Águas Claras reuniu de 15 mil a 20 mil pessoas. Com uma proposta de abrir espaço ao rock, quase 20 bandas subiram ao palco, entre elas Som Nosso de Cada Dia, O Terço e Moto Perpétuo. Jorge Mautner e Walter Franco também fizeram parte da escalação do festival. Outras edições aconteceriam em 1981, 1983 e 1984, com uma proposta mais eclética, trazendo nomes como Raul Seixas, João Gilberto, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Erasmo Carlos e Sandra de Sá.
Um mês de rock
O Hollywood Rock atraiu cerca de 10 mil pessoas a cada fim de semana para conferir shows de Rita Lee e Tutti Frutti (11/1), Mutantes e Veludo (18/1), O Peso, Vímana e O Terço (25/1) e, por fim, Erasmo Carlos, Celly Campelo e Raul Seixas (1º/2). O festival voltou a acontecer outras sete vezes, entre 1988 e 1996, quando tornou-se o principal evento de rock do país, com artistas do naipe de Nirvana (em 1993, no auge), Rolling Stones, Robert Plant e Jimmy Page, Aerosmith e Bob Dylan, além de bandas nacionais.
Festivais deixam herança valiosa
Testemunhas da história falam sobre os eventos de janeiro de 1975, importantes para a identidade de uma geração
“Meu coração está dizendo que se vocês não me derem carona, eu vou ficar aqui sozinho”, disse o jornalista, DJ e compositor Julio Barroso, fundador do Gang 90 e as Absurdettes. Era manhã de segunda-feira, 20 de janeiro de 1975, na Fazenda Santa Virgínia, em Iacanga. De dentro de seu carro “todo arrebentado”, o baixista Liminha, dos Mutantes, mas que havia tocado com o Som Nosso de Cada Dia no Festival de Águas Claras naquele fim de semana, ignorou o fato de o veículo estar lotado: “Entra aí”.
Quarenta e cinco anos depois, o produtor musical se atém a essa lembrança para falar sobre o clima que permeou não só os três dias de festival, mas toda aquela década de 70 no Brasil. “Era tudo muito paz e amor. Tínhamos uma ideologia, queríamos mudar o mundo”, comenta.
O fim de semana em Iacanga foi um momento de virada na vida de Nellie Solitrenick. Ela tinha 19 anos quando chegou ao interior paulista ao lado dos amigos, e foi ali que a então estudante se enveredou com mais ênfase em sua carreira como fotógrafa. Para ela, o legado do festival transcende a música e permanece vivo ainda hoje. “Fui para fotografar, mas acabei ajudando a vender arroz macrobiótico. O que me marcou foi o espírito de solidariedade e aventura que havia ali. Era toda uma revolução, e o rock era nossa bandeira de liberdade. Foi uma mudança comportamental muito intensa”, observa.
Para o produtor musical Pena Schmidt, o Festival de Águas Claras representou o que ele chama de “descoberta da solidariedade, o aconchego da multidão”.
Ainda hoje, ao falar sobre o evento, ele recorda como as pessoas absorveram um senso coletivo de empatia exatamente em um período em que havia, do outro lado, a mão bruta de um governo ditatorial. “Lembro que todos dividiam o alimento, Um tinha cebola, outro chegava com o tomate...”, conta.
Após o falecimento do pai, Leivinha e sua família venderam a fazenda em Iacanga. Há poucos anos, ele voltou ao local para participar do documentário “O Barato de Iacanga”, produzido pelo jornalista Thiago Mattar e disponível na Netflix. Hoje, o advogado revê todo um filme em sua cabeça. Para ele, o festival deixou a mensagem de coragem para uma geração que buscava um caminho e ali se encontrou.
“Isso me dá muita satisfação. Ajudei a mostrar um caminho que, talvez, eles não tivessem coragem de escolher”, comenta. “Aquilo me deu a certeza de dever cumprido. Falar isso é foda, é muito careta, mas é mais ou menos isso (risos)”, completa Leivinha.
Seminal
“As lembranças são poucas, mas boas. Afinal, já se passaram 45 anos”, brinca o produtor do Barão Vermelho Duda Ordunha. Ele integrava a equipe de produção da cantora Rita Lee e de sua banda Tutti Frutti naquele Hollywood Rock de 1975. A memória afetiva, no entanto, permanece.
Décadas depois, Ordunha reconhece a importância do festival no que se refere ao lançamento de uma semente. “Foi muito importante, não tinha nada parecido acontecendo na época. Para você ter uma ideia, o rock nacional só foi fazer sucesso mesmo, tocar na rádio e na TV, uns oito anos depois”, avalia o produtor.
Minientrevista
“Foi um ato político participar do Festival Águas Claras; estava-se lutando pela liberdade.”
Thiago Mattar, jornalista e diretor do documentário "O Barato de Iacanga"
De onde veio o interesse em registrar essa história em um documentário?
Há uns 12 anos, estava vendo o documentário sobre Woodstock quando meu pai passou na sala e falou: “Fui ao Woodstock brasileiro”. Pensei que fosse uma piada. Pesquisei a respeito, busquei fontes, achei um blog de uma senhora de Iacanga e comecei a me aprofundar no tema. Voltei a falar com meu pai, pedi para ele contar mais histórias. Cresci em Bauru, mas minha bisavó é de Iacanga, e íamos visitá-la com frequência. Ninguém imagina que naquela cidadezinha de velhinhas com cadeiras na frente de casa tinha rolado aquele evento. Comecei a entrevistar as pessoas de lá para tentar entender a história, fui chegando aos personagens. Coloquei na tela dez anos depois.
Qual foi a maior dificuldade no processo de pesquisa e produção?
O Brasil tem um problema muito sério com memória e preservação. Imagina o estado do material das imagens de um evento que aconteceu há 45 anos. Não temos a tecnologia para digitalizar película e vídeo como lá fora. Estamos muitos atrasados, não há investimento. Com algumas exceções, como a Globo, que se preocupa em preservar o acervo de telenovelas e alguma coisa de jornalismo, as próprias emissoras de TV não investem em recuperar o próprio acervo. Encontrei muita dificuldade para achar material preservado.
O documentário foi lançado em abril de 2019. Como foi a repercussão?
Cara, foi muito bacana. A primeira sessão foi em São Paulo, estava lotado, a fila virava a esquina. Havia diferentes gerações, gente levando filhos e netos, molecada com camisa do festival. As sessões ficavam sempre lotadas, isso nos surpreendeu. Em Minas, no Cine Ouro Preto, participamos da sessão de encerramento. Foi super legal, tinha uns hippies e artesãos sentados na frente. Antes de tudo isso, em janeiro, o filme estreou na Itália.
Aqueles jovens de 1975 viviam tempos de ditadura, imperava um controle sobre os costumes, um conservadorismo fortíssimo. O festival também tem um impacto político e social importante, né?
No Brasil, se ligava o comunismo aos cabeludos, como se todo cabeludo se juntasse para ser revolucionário. Às vezes, era só um monte de maluco que só queria sair do sistema. Hoje em dia, vejo que foi um ato político participar de um evento como Águas Claras porque estávamos lutando pela liberdade, pela expressão da individualidade.
Como foi a cobertura da imprensa da época?
As matérias desceram a lenha no festival, falaram que tinha sido uma coisa feia de muita gente usando droga. Alguns veículos enalteceram, como a (extinta) revista “Pop”, voltada para a galera do rock, mas as publicações da grande imprensa, como “Folha” e “Estadão”, desceram o pau.
O que o festival transmite de tão poderoso para estarmos falando dele 45 anos depois?
O Leivinha conseguiu, na minha opinião, fazer o impossível. Ele inventou uma maneira de “fazer fazendo”. O festival deixa uma herança de como se faz divulgação, como se monta um palco, como se corre atrás para conseguir as bandas, como fazer o marketing. O legado é esse: começar a construir sem saber como a obra vai terminar.