Ócio criador

'Farsa da Boa Preguiça', de Ariano Suassuna, completa 60 anos e segue atemporal

Considerada a peça preferida de seu autor, clássico ganhou reedição da editora Nova Fronteira que prepara mais novidades do escritor para 2021

Por Ana Clara Brant
Publicado em 22 de janeiro de 2021 | 08:00
 
 
 
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Há quase exatos 60 anos, no dia 24 de janeiro de 1961, os espectadores que compareceram ao saudoso Teatro de Arena do Recife se depararam com um texto inédito de Ariano Suassuna (1927-2014): “Farsa da Boa Preguiça”. Sob a direção de Hermilo Borba Filho, com cenários e figurinos de Francisco Brennand e trilha sonora de Capiba, o espetáculo arrebatou a plateia. “As notícias dos jornais dão conta de um grande sucesso. Graças a Ariano, ao diretor Hermilo Borba Filho e ao conjunto excepcional de atores do Teatro Popular do Nordeste, o TPN, grupo fundado por Hermilo e Ariano, o Recife encontrava-se no foco das atenções da melhor crítica teatral do país”, comenta o escritor e professor Carlos Newton Júnior, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que foi amigo pessoal de Suassuna e é considerado um dos maiores especialistas de sua obra.

A peça – produzida em versos e dividida em três atos – conta a história de Joaquim Simão, um poeta de cordel, pobre e preguiçoso, que só pensa em dormir. Ele é casado com Nevinha, mulher religiosa e muito dedicada ao marido e aos filhos. O casal mais rico da cidade, Aderaldo Catacão e Clarabela, possui um relacionamento aberto. O homem é apaixonado por Nevinha, enquanto a mulher quer conquistar Joaquim. Permeando as desventuras dos personagens, a história faz uma ode à boa preguiça ou ao ócio criador, como pregava Suassuna, com muito humor e crítica social. “Farsa da Boa Preguiça” compõe a trindade das peças mais representativas da dramaturgia do escritor, junto com o “Auto da Compadecida” e “A Pena e a Lei”.  

Para Carlos Newton, um dos pontos de destaque da “Farsa” é a “unidade conseguida entre o alto nível literário do texto e a carpintaria teatral”. “Na verdade, esta é uma característica que se encontra, de modo geral, em todo o teatro de Ariano, e não apenas na ‘Farsa da Boa Preguiça’. Na ‘Farsa’, ainda por cima, todos os diálogos são escritos em versos, e, mesmo assim, eles soam com a mesma naturalidade do falar cotidiano. Não se sente nenhum artificialismo nos diálogos, pelo contrário, a impressão é a de uma espontaneidade absoluta, como se tudo aquilo estivesse se desenvolvendo naturalmente, de improviso, como na vida”, analisa.

Para celebrar a efeméride, a editora Nova Fronteira lançou recentemente uma nova edição da obra, com texto de orelha de Carlos Newton Júnior e ilustrações do filho de Suassuna, Manuel Dantas Suassuna. Carlos Newton, aliás, está trabalhando junto à editora no projeto de reedição dos livros do escritor. Em seu texto de apresentação, o especialista cita que, entre as várias peças que Ariano Suassuna havia escrito, era justamente a “Farsa da Boa Preguiça” sua preferida. “Ele tinha plena consciência de que a ‘Farsa’ se encontrava no mesmo nível estético de suas grandes comédias – o ‘Auto da Compadecida, ‘A Pena e a Lei’ etc. Talvez a preferência pela ‘Farsa’ estivesse ligada ao fato de que o protagonista é um poeta popular e cantador. Ariano tinha uma profunda admiração pelos poetas populares e pelos cantadores. Por outro lado, por meio das falas de Joaquim Simão, ele acaba respondendo a algumas críticas que lhe eram dirigidas sobre a sua concepção pretensamente ‘purista’ da cultura popular, algo que ele nunca teve, a bem da verdade. Por fim, como eu disse antes, trata-se de uma peça toda escrita em versos. De todas as grandes comédias de Ariano (num total de seis), a ‘Farsa’ é a única escrita inteiramente em versos. Ora, Ariano costumava dizer que a sua poesia era a fonte profunda de tudo o que ele escrevia, e toda a sua obra se encaminha, a partir de certo momento, para uma integração dos gêneros, com a poesia adentrando pela prosa, fundindo-se à sua pintura e ao seu desenho”, esclarece.

Carlos Newton ressalta o caráter anacrônico não só da “Farsa da Boa Preguiça”, mas de outros trabalhos de Suassuna, e acredita que isso acontece porque o tema central da peça, o ócio criador do artista ou a “boa preguiça”, é um problema de natureza atemporal e universal. “Nesse sentido, eu lembraria uma frase do dramaturgo russo Tchekhov, numa carta para um editor. Vou citar de memória, mas o conteúdo é certamente fiel: ‘Não há nada mais cansativo e antipoético do que a prosaica luta pela sobrevivência’. É uma verdade cristalina, e todo artista passa por isso. O escritor precisa de tempo e sossego para escrever, e, enquanto escreve, há contas para pagar”, observa.

O professor e escritor pernambucano, que conheceu Ariano Suassuna em 1984, quando foi seu aluno na Faculdade de Arquitetura, ainda salienta o aprendizado que recebeu do mestre ao longo de 30 anos de convivência. “Para além das lições de ordem literária e artística, de modo geral, muitas lições de vida. Era um homem simples, sem qualquer tipo de empáfia, humilde e generoso, um franciscano, completamente alheio a questões ligadas ao consumismo, à moda, à vulgaridade que impera em muitos setores da vida cotidiana. Foi um grande amigo dos seus amigos, e a todos ajudou, na medida de suas forças. Tinha um amor verdadeiro e profundo pelo Brasil e seu povo e sonhava com um país mais justo e mais fraterno, em todos os sentidos”.

Novidades para 2021 

Desde 2016, os direitos da obra de Suassuna estão sob a responsabilidade do grupo Ediouro, sendo a primeira vez que a produção completa do autor está reunida em uma única casa editorial. Isso deu à Nova Fronteira a oportunidade de criar uma identidade visual unificada para todos os títulos do escritor nordestino.

Entre os livros já lançados, além da própria “Farsa”, estão os romances “A História de Amor de Fernando e Isaura” e “O Sedutor do Sertão ou O Grande Golpe da Mulher e da Malvada”, escrito em 1966 e que permaneceu inédito até 2020, quando ganhou sua primeira edição pela Nova Fronteira; as peças “A Pena e Lei”, “As Conchambranças de Quaderna” e o clássico “Auto da Compadecida”, além de outros.

E tem mais novidade. Carlos Newton revela que está tentando concluir a “Poesia Completa de Ariano”, volume que está organizando há mais de um ano, para ser editada ainda em 2021. “Ariano sempre foi pouco conhecido como poeta, apesar de possuir uma obra importantíssima em poesia”, pontua. Outro título previsto é “A Pensão de Dona Berta”, volume com textos voltados para jovens, que saíram em jornal, mas nunca foram publicados em livro. “(‘A Pensão’) reúne textos curtos, alguns ‘casos’ que garimpei a partir de artigos de jornal, acentuando aquela sua face de contador de histórias engraçadas, entre o cronista e o memorialista, e o livro está belíssimo, inteiramente ilustrado por Manuel Dantas Suassuna e com projeto gráfico de Ricardo Gouveia de Melo. Também para 2021, a Nova Fronteira planeja lançar outras peças teatrais de Ariano, peças que saíram apenas no Teatro Completo, que organizei em 2018, e que agora sairão em formato independente. Por fim, pensamos ainda numa edição especial de ‘A Pedra do Reino’, para comemorar os 50 anos da primeira edição da obra, que ocorreu em 1971”, adianta Carlos Newton. (ACB)

“Farsa da Boa Preguiça” - nova edição

Ariano Suassuna

Ed. Nova Fronteira

272 páginas

R$ 49,90

 

PINGUE-PONGUE COM CARLOS NEWTON JÚNIOR (PROFESSOR E ESPECIALISTA NA OBRA DE ARIANO SUASSUNA)

1 - Queria que você contasse um pouco como se deu esse encontro com Ariano Suassuna. Foi na faculdade de Arquitetura que tudo começou?

Sim, conheci Ariano na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no início do ano letivo de 1984. Eu estava cursando o primeiro semestre do curso de Arquitetura, e ele foi o meu professor de Estética. Ele ensinava Estética e outras disciplinas ligadas à arte e à cultura no Centro de Artes e Comunicação, onde eu estudava, e também no Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Fiquei impressionado com o professor e o curso, e passei a me interessar pela sua obra de escritor, que conhecia pouco. Eu era muito jovem, não havia ainda completado 18 anos. Na Universidade, fiz outros cursos com Ariano e fomos nos tornando amigos. Aos poucos, naturalmente, fui me tornando um conhecedor de sua obra. Convivi com ele por cerca de trinta anos, tive acesso à sua biblioteca, aos seus originais inéditos etc. Durante os últimos anos de sua vida, eu o ajudei na digitação e revisão dos originais do “Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores.”

2 - E como você recebe esse título de “pupilo” dele?

Recebo com muito orgulho. Para mim, divulgar a sua obra é um prazer e, ao mesmo tempo, um dever de ofício. Quem dera todo brasileiro pudesse ler os grandes intérpretes do Brasil.  Ariano certamente é um desses.

3- O que mais te chama a atenção na obra de Ariano de uma maneira geral?

Ele criou um universo ficcional próprio, um universo mítico e poético original e de grande beleza. Somente os grandes criadores conseguem isso. Um estilo absolutamente pessoal de escrever, uma visão de mundo só dele. Como bem disse João Cabral de Melo Neto, num poema dedicado a Ariano, ele criou um “fantástico espaço suassuna/ que ensina que o deserto funda”. No campo da dramaturgia, para ficarmos só neste, Ariano foi o responsável pela criação de um teatro inteiramente novo, um “teatro do Nordeste”, e ainda muito jovem abriu um caminho (o caminho de um teatro erudito a partir da cultura popular) que foi trilhado depois por escritores mais velhos e mais experientes, como o poeta Joaquim Cardozo, por exemplo.

4 -  E você tem uma peça preferida de Ariano? Se sim, qual e por quê?

A minha peça preferida é o “Auto da Compadecida”. Não apenas pela alta qualidade da peça, sob todos os aspectos, tanto os literários quanto os mais propriamente teatrais, mas porque é aquela em que ele aborda de forma mais contundente algumas questões que são importantíssimas para a compreensão da nossa formação econômica e social – a exploração da classe trabalhadora pela elite econômica, o racismo, os valores do verdadeiro cristianismo etc. Trata-se de uma peça absolutamente atemporal e universal. Quem a assiste ou lê o texto pela primeira vez, pode pensar que Suassuna a escreveu ontem. Ela não envelheceu, nem envelhecerá Jamais.

5 - Na orelha da nova edição da “Farsa da Boa Preguiça”,  você afirma que o “Auto da Compadecida”, “A Pena e a Lei”  e a “Farsa” formam quase uma trilogia. Por quê?

De todo o conjunto das comédias de Ariano, são as três que expressam de modo mais evidente a originalidade de sua dramaturgia, constituída pela transposição, para o palco, de histórias populares extraídas do romanceiro popular nordestino e reelaboradas pelo autor, a partir de sua visão de escritor erudito. Lembro que “romanceiro” é todo o universo formado pelos “romances” da literatura de cordel, veiculados no “folhetos”, bem como pela literatura de tradição oral decorada, pela poesia improvisada dos cantadores etc. Ariano mergulha no romanceiro popular para escrever o "Auto da Compadecida", e é como se aprofundasse esse mergulho nas duas peças seguintes, trazendo elementos de espetáculos populares relacionados ao romanceiro, como o mamulengo, em “A Pena e a Lei”, e a cantoria de viola, na Farsa.

6 - A “Farsa” estreou nos palcos em 1961 mas só virou livro em 1974. Por que a demora?

A primeira edição da “Farsa da Boa Preguiça” saiu em 1974, treze anos, portanto, após a sua estreia nos palcos. Essas questões editoriais são sempre complexas, é difícil dizer por que a peça não foi publicada antes. O que posso afirmar, com segurança, é que Ariano não tinha muita habilidade com editores. Quando um editor pedia um texto, e a depender, claro, de certas condições, ele geralmente costumava encaminhar para a publicação.

7 - Muitas das obras de Ariano, como a própria “Farsa da Boa Preguiça” e, principalmente, o “Auto da Compadecida”, já ganharam várias adaptações para o teatro, cinema e TV. De uma maneira geral, o que acha dessas adaptações? Tem alguma, em especial, que lhe chama mais a atenção?

De uma maneira geral, gosto de todas elas. Gosto muito da primeira versão do “Auto da Compadecida” para o cinema, o filme “A  compadecida”, de George Jonas, de 1969, pouquíssimo conhecido hoje em dia. E gosto muito, também, da versão da “Farsa da Boa Preguiça” para a televisão, dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Os atores, ali, fizeram um trabalho excepcional, sobretudo a Marieta Severo, que fez a Clarabela. Para não falar da dupla Matheus Nachtergaele e Selton Mello na terceira versão cinematográfica do “Auto da  compadecida”, dirigida por Guel Arraes.

 

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