Futuro incerto

Fechadas pelo coronavírus, salas de cinema estão ameaçadas

Projeto Cinema Virtual tenta levar espectador a uma experiência parecida com a da sala de exibição e com direito a filmes inéditos

Por Alex Bessas
Publicado em 27 de maio de 2020 | 09:00
 
 
 
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A paisagem faz lembrar a de uma distopia, em um mundo ameaçado por um inimigo invisível. Há a carga dramática de uma crise financeira que se avizinha. A cena, agora, é de suspense, em que o sufocante sentimento de medo causa apreensão diante de um futuro incerto. E a expectativa é que, apesar do enredo, se chegue a um final feliz. Algo assim seria a sinopse de um registro que percorresse, hoje, os bastidores de toda a cadeia produtiva do cinema: produtores, distribuidores e exibidores não sabem ao certo quando retomarão suas atividades, nem sequer como elas serão executadas em um mundo pós-pandemia. Pior: muitos temem não sobreviver até lá.

Com salas fechadas, produções perdem uma de suas principais vitrines para acessar o público enquanto as plataformas de streaming consolidam sua força – o que pode desnivelar a já conhecida queda de braço entre as modalidades quando for possível um eventual retorno das exibições. Há cerca de dois meses sem a venda de um ingresso sequer e sem nenhuma sinalização de apoio – seja por meio de linhas de crédito ou por meio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) –, a saúde financeira das cabines fica ameaçada. 

Existe ainda o receio de que o público, na ausência de uma vacina, evite frequentar um espaço fechado em que há concentração de pessoas. Ao mesmo tempo, são elaborados protocolos de segurança que vão limitar o número de poltronas disponíveis – reduzindo bruscamente as possibilidades de faturamento.

É neste ambiente, ensaiando os primeiros passos de uma longa travessia, que começa no contexto de uma crise sanitária aguda e que precisa mirar um horizonte, que será inaugurada nesta quinta-feira (28) uma plataforma digital de exibição de filmes inéditos e que une distribuidores e exibidores: o Cinema Virtual, que busca emular a experiência da rotina das salas de cinema – a começar pela compra dos bilhetes.

“Antes de assistir ao filme, o espectador deverá escolher sua rede exibidora de preferência, isto é, a sala a que ele iria se as projeções não estivessem suspensas, que receberá parte da renda de cada sessão”, explica Marcelo Spinassé Nunes, idealizador do projeto e CEO da Encripta, empresa especializada em distribuição digital de conteúdo audiovisual.

Já convencionais na programação do circuito de cinema, as estreias na plataforma também acontecem a cada quinta-feira. Além disso, os títulos mais desejados da semana anterior são mantidos por mais uma semana no catálogo – que já tem mais de 50 títulos cadastrados, sendo que entre 10 e 15 deles serão disponibilizados semanalmente.

Em cartaz estão, por exemplo, “Os Olhos de Cabul”, exibido no Festival de Cannes 2019 e premiado em Annecy; “Copperman: Um Herói Especial”, vencedor do Prêmio do Júri BIFF JR de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Brasília; “Antes de Partir”, estrelado por Brian Cox, vencedor do Globo de Ouro de melhor ator; e “Corpus Christi”, que concorreu ao Oscar 2020 de filme internacional pela Polônia. 

Também praxe no universo cinematográfico, os filmes lançados por meio do mecanismo deverão cumprir a janela de 90 dias até que possam ser disponibilizados em outras plataformas físicas ou digitais. “Tentamos manter toda a estrutura, toda a rotina a que os frequentadores já estavam habituados”, comenta Nunes.

“Mais que uma saída emergencial, é um caminho para o futuro”

Por enquanto, das salas de Minas Gerais, somente o Cine 14 Bis, de Guaxupé, no Sul do Estado, aderiu à ferramenta.

“A primeira rodada de conversa foi difícil, porque os donos de salas ficam receosos quando falamos em streaming, pensam que estamos prejudicando-os. Mas, agora, começam a entender que estamos nos posicionando apenas como um meio de viabilizar as operações deles”, reconhece Marcelo Spinassé Nunes, detalhando que distribuidores e exibidores, neste primeiro momento, não têm custo com o processo de transmissão ou com a manutenção da plataforma online.

Para o idealizador do Cinema Virtual, mais do que uma saída emergencial, a iniciativa deve ser encarada como um caminho para que os exibidores viabilizem suas operações. “Acredito que a atividade vá sobreviver à pandemia, mas talvez tenha chegado o momento de ofertar serviço diferenciado sob conjunto”, argumenta. 

Nunes cita que esta seria, ainda, uma forma de driblar a pressão por encurtar as janelas entre a estreia no cinema e a disponibilização dos filmes por outros meios. Caso emblemático dessa disputa foi o cancelamento da animação “Trolls 2”, que foi lançado diretamente via streaming. A decisão provocou celeuma: a maior rede exibidora dos Estados Unidos, a AMC Theatres, reagiu anunciando boicote aos filmes do conglomerado NBCUniversal, responsável pela franquia.

“Com a Covid-19, percebe-se que as grandes companhias estão forçando que esse intervalo seja reduzido, algumas estão lançando títulos diretamente via streaming… Se a gente não criar uma janela digital de cinema que ande junto com a janela física, será difícil manter a física”, examina. Outra vantagem do mecanismo, diz, seria desafogar as salas que, ao reabrir, terão que lidar com um acumulado de produções que tiveram que adiar suas estreias.

Cada sessão do Cinema Virtual custa R$ 24,90 e vale por 72 horas. Alguns filmes poderão ter preços promocionais, dependendo do acordo entre distribuidor e exibidor – caso de “Os Olhos de Cabul”, que estará disponível por R$ 19,90.

“O fim do cinema nunca saiu de cartaz”

O prenúncio da morte do cinema é debatido desde o surgimento da televisão e, depois, do videocassete. Voltou com o DVD, o Blu-ray e, na sequência, com os serviços digitais de compra, de aluguel e de assinatura de catálogos. “Agora, voltamos a essa discussão diante de uma pandemia que obrigou o fechamento das salas e que potencializou a força do streaming”, argumenta Maurílio Martins, diretor da produtora mineira Filmes de Plástico, que reconhece se preocupar com o presente e com o futuro. 

Apesar disso, se diz um otimista e acredita que o gesto, quase litúrgico, de ir ao cinema deve sobreviver ao coronavírus. “Passado o pânico, as relações sociais, mesmo que modificadas, serão mais valorizadas, e esses ajuntamentos – em locais como estádios, teatro e cinemas – devem voltar, porque são parte vital da vivência humana”, examina.

De fato, nos Estados Unidos, uma pesquisa de mercado desenvolvida pela EDO sinaliza que 75% dos entrevistados estão dispostos, se medidas de segurança forem adotadas, a voltar para os cinemas quando reabertos. Apenas 13% disseram que um retorno a esses espaços seria improvável. Em alguns Estados americanos, salas voltam a funcionar em junho.

Mas, ainda que esperançoso, Martins enumera incertezas. “As salas terão dinheiro suficiente para reabrir? E, se precisarem se adaptar, que tipo de filme vão priorizar? E as produtoras, principalmente as pequenas, vão sobreviver?”, questiona, evidenciando o receio de que a crise possa acentuar as dificuldades para o cinema independente.

“No Brasil, de 150 filmes nacionais feitos em um ano, raríssimos chegavam a duas semanas de exibição”, pontua o cineasta, lembrando que, com exibições suspensas, um grande contingente de produções se perde.

“Algumas produtoras conseguem escoar obras pelo streaming, mas há muitos filmes que, sem a estreia no cinema, acabam em um limbo, sem contato com o público”, avalia, citando que a Filmes de Plástico tinha dois títulos às vésperas de estrear antes da suspensão das atividades: “Marte 1”, dirigido por Gabriel Martins, e um longa filmado em São Paulo e com direção de Thais Fujinaga, chamado provisoriamente de “Litoral”.

“Um duro golpe, mas não o nocaute”

“A pandemia é um soco em toda a cadeia do cinema, de uma ponta a outra”, avalia Felipe Lopes, diretor da Vitrine Filmes. As salas, diz, são a primeira janela, a grande vitrine dos filmes para o público. “Um lugar de prestígio e de destaque que a gente perde para além de toda a perda financeira, de forma que, hoje, sobram dúvidas sobre como será o futuro”, diz. 

“Há toda uma luta para construção dessa rede e muito suor empenhado na criação de uma política pública e do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), mas, infelizmente, o que vemos é uma grande demora dos órgãos competentes em reagir a essa crise, prejudicando a vida de muitas famílias e colocando todo setor na corda bamba”, critica.

A mencionada inação foi alvo de uma provocação do Tribunal de Contas da União (TCU), que, há cerca de duas semanas, endereçou ofício a Regina Duarte, que deixou o cargo de secretária especial da Cultura na última quarta-feira (20), e a Alex Braga, diretor-presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine). O documento cita que, sem que o governo convoque o Comitê Gestor e defina o destino dos recursos do FSA, um montante de aproximadamente R$ 723 milhões está parado.

Na busca por caminhos que fortaleçam toda a cadeia produtiva, a Vitrine Filmes é uma das distribuidoras a ingressar na plataforma Cinema Virtual. “Desde que os cinemas fecharam, em março, ficamos preocupados com as atividades do setor, em especial com os exibidores, que têm um impacto muito maior na perda de receita. Acredito que a proposta da ferramenta vem a adicionar, mantendo a união de toda a rede e permitindo que as pessoas participem ativamente no apoio às salas que frequentam”, analisa.

Para Lopes, aliás, a expectativa é que, tão logo volte a ser seguro, o público regresse aos cinemas.

“O prazer individual do streaming não substitui a experiência coletiva”

A curadora do Centoequatro, Mônica Cerqueira, também está confiante de que, quando houver a retomada das atividades, uma legião de cinéfilos vai estar ansiosa por reviver essa experiência. O prazer individual, representado pelas plataformas de transmissão sob demanda, acredita ela, não é capaz de ocupar o espaço da experiência coletiva das cabines de projeção. 

“É difícil fazer uma previsão, estamos vivendo algo inédito. Mas acredito que o streaming pode e deve conviver com a sala de cinema e que, quando tudo passar, esses espaços devem, sim, permanecer – mesmo que exista outra forma de receber o público em um primeiro momento, algum protocolo”, aponta, assegurando que a possibilidade de convivência e de ter uma imersão mais absoluta são fatores motivadores para o público.

Com a pandemia, o Centoequatro se viu obrigado a criar uma plataforma de transmissão online, o Cine104 em Casa. “Como temos um projeto aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura e patrocínio do banco BMG, decidimos criar esse canal como uma forma de manter o elo com os frequentadores do espaço”, explica Mônica.

Em um segundo momento, passada a crise mais aguda e quando for possível a reabertura da sala, a curadora defende que a ferramenta seja utilizada para exibições de obras como curtas e médias-metragens, filmes feitos por artistas plásticos e documentários, complementando a oferta de conteúdo do lugar.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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A reportagem de O TEMPO entrou em contato com proprietários de salas de cinema de Belo Horizonte e com uma importante rede de exibidores. Foram enviadas questões sobre expectativas de retorno das atividades, sobre possíveis protocolos de segurança a serem adotados, sobre possíveis dificuldade em levar esses lançamentos contingenciados para as salas e os critérios que serão usados.

Também foi perguntado se, com a suspensão das atividades, ocorreram demissões e se há expectativa de apoio governamental, seja via disponibilização de crédito ou via Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Até o fechamento da reportagem, no entanto, não houve nenhum retorno.

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