Universo LGBTQIA+

Felipe Cabral estreia em romance com 'O Primeiro Beijo de Romeu'

Narrativa foi inspirada em episódio ocorrido na Bienal do Livro do Rio de 2019, quando houve uma tentativa de censura a uma obra da Marvel por parte do ex-prefeito Marcelo Crivella

Por Patrícia Cassese
Publicado em 16 de novembro de 2021 | 16:24
 
 
 
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Corria o mês de setembro de 2019 quando os jornais passaram a noticiar um acontecimento relativo à Bienal do Livro do Rio de Janeiro, mas que foi parar nas manchetes não pelo viés cultural, como seria esperado. É que o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), anunciou - em postagem nas redes sociais do dia 5 daquele mês -, que mandaria recolher todos exemplares do gibi “Vingadores - A Cruzada das Crianças”, lançamento Marvel, escrito pelo norte-americano Allan Heinberg e ilustrado pelo britânico Jim Cheung. Segundo Crivella, a publicação trazia "conteúdo sexual para menores”. 

Foi ali, naquele dia, que foi plantada a semente para uma outra publicação, no caso, um romance: “O primeiro beijo de Romeu”, que marca a estreia de Felipe Cabral e que será lançado nesta quarta (16), pela Galera Record. Felipe, vale dizer, participava daquela Bienal, como mediador e curador de duas mesas sobre a literatura LGBTQIA+. "Estava animado e honrado por participar de um evento tão grandioso. No entanto, quando, na véspera das mesas, o então prefeito decide censurar um quadrinho com um beijo gay e enviar fiscais para lá, tudo mudou de figura. Ainda que a gente se lembre da resistência criada, dos protestos emocionantes, da união entre as editoras, do apoio da Bienal, a verdade é que também foi muito pesado, tenso e aflitivo. Ninguém imaginava enfrentar uma censura em 2019, mas ela ressurgiu aos nossos olhos - e não era nem um pouco tranquila", rememora ele. 

Inspirado nos acontecimentos citados, acorreu-lhe à mente a história de Romeu, jovem que, prestes a dar seu primeiro beijo, tem sua vida virada de cabeça para baixo. "Depois do evento, quando cheguei em casa, chorei por todo aquele horror, por ainda precisar enfrentar aquele tipo de gesto autoritário no que deveria ser apenas um dia de celebração. Pensei que, se para mim já estava difícil, como deveria ser para quem ainda estava dentro do armário, alguém mais novo? Que peso teria para essa pessoa ver o prefeito de sua cidade censurando um beijo igual ao que ela queria dar? Qual peso tem na autoestima e na vida de uma pessoa LGBT quando uma figura pública é assumidamente homofóbica? Essa indagação foi meu ponto de partida".

Na trama, Romeu vive duas situações que o tiram do eixo. A primeira, ao descobrir que o livro que seu pai lançaria na Bienal do Rio acaba de ser censurado pelo prefeito da cidade. A segunda, o de ver sua orientação sexual sendo alvo de comentários maldosos dos colegas. O livro conta com orelha assinada por Jean Wyllys e responde pela primeira vez na qual uma obra young adult nacional publicada por uma grande editora mostra um beijo entre dois garotos na capa, numa ilustração do artista Johncito. 

"O livro é narrado pelo Romeu e por um de seus pais, o Valentim. Um tem 15 anos e o outro está prestes a fazer 40. A história foi uma oportunidade de brincar com o Felipe adolescente ainda dentro do armário, cheio de inseguranças e medos, e o Felipe autor de hoje, com quase 36 anos. Por mais que a história seja uma ficção, tem muito de mim nesses dois personagens, certamente", conta o autor, em entrevista ao Magazine. 

Perguntado sobre a conexão que existe entre o episódio que inspirou seu livro e o ocorrido há semanas, por ocasião da apresentação do filho do Super-Homem, que causou celeuma, Felipe explana: "Infelizmente, a tentativa de censura que vimos em 2019 já era uma demonstração do que podíamos esperar dos próximos anos. Essa onda conservadora é movida a ignorância, medo, preconceito. Há alguns anos, as pessoas se sentiam, em sua maioria, constrangidas e envergonhadas de serem preconceituosas, mas, a partir da eleição de pessoas declaradamente homofóbicas, esta parcela da sociedade se sentiu encorajada e validada a sair por aí espalhando ódio e preconceito. As lutas por direitos da comunidade LGBTQIA+ foram tachadas de uma 'disputa ideológica' e tem gente que acredita que um beijo em um quadrinho que nem foi lançado ainda, como o do filho bissexual do Super-Homem vai 'converter criancinhas' e 'destruir famílias'", indigna-se. 

Mas Felipe também acrescenta um componente nesta história que descreve como hipócrita e cruel. A saber: ele lembra que o ódio pode gerar engajamento e até eleger pessoas a um cargo público. "A LGBTfobia se tornou uma plataforma política por aqui e pelo mundo. Revestido como se fosse apenas um discurso conservador, temos um discurso de ódio contra nossos afetos e nossas existências. E se nós rebatemos, reagimos, somos nós que somos vistos como violentos".

No entanto, o autor avisa que, por mais que o livro tenha uma trama na qual os personagens passam por momentos muito duros, a história é, em sua essência, esperançosa. "O tempo inteiro acompanhamos a rede de apoio entre todos os personagens e como eles se ajudam, mesmo cheio de dúvidas, nervosos e perdidos. É um livro que valoriza o poder da união, da família, da amizade e da comunidade. Todos e todas nessa história são apaixonados pela literatura, estão em plena Bienal do Livro, então, há um desejo explícito de que os leitores relembrem o poder que há na arte, na cultura, e como as histórias podem nos fortalecer e nos trazer esperança em tempos tão sombrios. Eu quero que os leitores terminem a leitura se sentindo menos sozinhos e com vontade de devorar mais e mais livros", pontua.

Em tempo: 

Ator, autor, roteirista, diretor artístico do Festival de Teatro Universitário e criador do canal “Eu Leio LGBT”, Felipe Cabral estreou no teatro em 2019, com o texto “40 anos esta noite”, montagem dirigida por Bruce Gomlevsky que, após três temporadas cariocas e uma paulistana no 27º Festival Mix Brasil, virou livro pela Editora Giostri e recebeu as indicações nas categorias de Melhor Autor e Melhor Ator no “Prêmio do Humor”, idealizado por Fabio Porchat.

Com os seis curtas-metragens temáticos que escreveu - “Gaydar” (2012), “Rótulo” (2013), “Aceito” (2014), “Você” (2017), “Meu Preço” (2019) e “Simples Assim” (2021) - participou de mais de 150 festivais nacionais e internacionais, acumulando mais de 25 prêmios. Em 2012, com Gabriel Falcão, deu o seu primeiro beijo gay em cena em “Gaydar”, o que aconteceria novamente em “Aceito” (2014), numa cena com Jefferson Schroeder.

Na série “Quero Ser Solteira” (MultiShow, 2012), escreveu e protagonizou com o ator Eduardo Rios seu primeiro beijo gay para a TV. Na 4ª temporada do humorístico “Vai Que Cola” (MultiShow, 2017), fez o mesmo pelo personagem Ferdinando (Marcus Majella), que beijou o bombeiro Rômulo (Lucas Malvacini).

Em 2017 ainda comprou os direitos e encenou “O filho do presidente” (“Now or later”, de Christopher Shinn), e também fez sua primeira curadoria e mediação de mesas LGBTQIA+ na Arena #SemFiltro na Bienal do Livro do RJ. Repetiu o feito na edição de 2019. Colaborador das novelas de Rosane Svartman e Paulo Halm, em “Totalmente Demais” (TV Globo, 2015) foi o responsável pelas cenas de Max (Pablo Sanábio), incluindo as que o personagem sofreu homofobia.

Na trama de “Bom Sucesso” (TV Globo, 2019) veio a oportunidade de escrever a cena do primeiro beijo gay das novelas das 19h da TV Globo, realizado pelos personagens Pablo Sanchez (Rafael Infante) e Willian (Diego Montez). Em 2020, pelo canal Eu Leio LGBT, elaborou ações artísticas e realizou uma série de lives com temas pertinentes ao universo LGBTQIA+, recebendo convidados significativos da literatura para o movimento, como Jean Wyllys, Amara Moira e Natália Borges Polesso, entre outros. Na 20ª Bienal do Livro do Rio, em dezembro, estará pela terceira vez como mediador e curador de mesas sobre a literatura LGBTQIA+.

Serviço

“O Primeiro Beijo de Romeu”

Felipe Cabral

Editora Galera Record

R$ 49,90

Páginas: 434

Gênero: Ficção, Infantojuvenil e Jovem Adulto

Lançamento: 16 de novembro


 

 

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