Uma história de 43 anos confinada em um espaço de 37 m². Esta é a realidade do Grupo Oficcina Multimédia (GOM), fundado em Belo Horizonte em 1977 pelo compositor argentino Rufo Herrera. A companhia autoral, conhecida por experimentar possibilidades artísticas e também pela pesquisa cênica para a elaboração de seus espetáculos, que misturam atuação, música e linguagem corporal, é mais uma entre tantas afetadas pela pandemia do novo coronavírus.
Nos últimos dias, impossibilitado de arcar com o aluguel do galpão que ocupava havia nove anos na rua Grão Mogol, na região Centro-Sul de BH, o grupo teve de esvaziar a sede, laboratório criativo da companhia que recebeu suas quatro produções mais recentes: “Boca de Ouro”, “Macquinária 21”, “Aldebaran” e “Play It Again”.
Agora, o que restou – figurinos, cadeiras, mesas, cavaletes, adereços de espetáculos e escadas, entre outras coisas – ocupa uma pequena sala (uma espécie de guarda-móvel) localizada em uma rua próximo ao galpão, que será entregue aos donos. Diretora do GOM desde 1983, Ione de Medeiros lamenta a situação. Ela diz que o Armatrux e outros artistas se disponibilizaram a guardar parte do material do grupo, que teve de doar algumas peças do acervo: “É um luto, é muito triste. Não há espaço para a memória, é uma história que se dispersou. Para onde vai a cultura da cidade? Quando falo de cultura, é um elo, não é só o Multimédia. É toda uma cadeia enorme atingida. Não podemos depender de fazer a história da arte em lives”.
No período da pandemia, o Oficcina Multimédia também viu a estreia de “Vestido de Noiva”, espetáculo com texto de Nelson Rodrigues que ocuparia as salas do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-BH), ser riscada da programação devido ao isolamento social. “Temos mantido atividades online com o elenco, estamos revendo textos, trabalhando, ensaiando. O artista sempre vai dar um jeito, mas até quando vamos ficar dando um jeito? É uma luta”, afirma Ione.
A diretora admite que o cenário é completamente incerto: “Se você me perguntar como vai ser, eu não sei. Emocionalmente é muito pesado. O grupo não vai acabar, vamos continuar de alguma forma, mas você vê se desfazer uma história”.
Infelizmente, a situação do Grupo Oficcina Multimédia não é um caso isolado. Fundador da Companhia Pierrot Lunar, criada há 26 anos, o ator e produtor cultural Léo Quintão conta que o grupo cortou luz, água e internet de sua sede logo no início da pandemia, em abril, para não gerar mais custos. O Espaço Aberto Pierrot Lunar, localizado no bairro Floresta, na região Leste da capital, recebe espetáculos, ensaios, oficinas e exibição de filmes há 12 anos e está fechado desde 15 de março. “É uma dor no coração, é nossa segunda casa, íamos lá todos os dias”, lamenta Quintão.
Sem patrocínios, a companhia minimiza os gastos da sede com colaborações por meio de um financiamento coletivo lançado antes mesmo da pandemia. Nele, as pessoas podem fazer doações mensais para ajudar na manutenção do centro cultural. Com as portas fechadas, além de artistas que perderam quase que integralmente sua renda, uma cadeia produtiva deixa de ser movimentada.
“Quando temos o espaço funcionando, contratamos técnicos de som, de iluminação, bilheteiro, uma cadeia que gira em torno de uma programação que hoje não existe, além de movimentarmos as lojas vizinhas e o bairro também”, destaca o ator.
Campanhas
“A situação é dramática, estivemos à beira de entregar nosso espaço”, afirma Eduardo Felix, diretor e fundador do Pigmalião Escultura que Mexe, teatro de bonecos criado em BH há 13 anos. O grupo só não perdeu o ateliê que tem no bairro Floresta porque conseguiu renegociar e reduzir o valor aluguel do imóvel em 50%. Paralelamente à divulgação de uma série de vídeos do personagem Seu Geraldo, uma vaquinha virtual lançada em abril ajudou a custear os gastos com a manutenção do espaço, mas, a partir de agora, a companhia parte para outra campanha de financiamento.
Felix pondera que as iniciativas para obter recursos por meio de doações revela a solidariedade das pessoas em torno da cultura e, ao mesmo tempo, a precariedade e a falta de políticas para o setor. “As coisas já estavam complicadas antes da pandemia, agora estão mais graves. Estamos tentando resistir, mas não é fácil. Se tivéssemos alternativa, estaríamos pensando e fazendo teatro mesmo a distância”, diz Felix.
Segundo Ione de Medeiros, o Oficcina Multimédia não está parado e tenta encontrar possibilidades para garantir recursos em meio ao cenário de crise, mas isso demanda tempo. Uma das ações será uma proposta na Lei Municipal de Incentivo à Cultura via Fundo Municipal para a publicação de um livro sobre os quase 45 anos de estrada do grupo. Ela entende o papel de editais emergenciais neste momento, mas também pede um olhar do poder público pensado para a cultura de forma que fomente o setor também no longo prazo. “As políticas públicas para as artes são precárias. Essa crise se agravou muito na pandemia, mas já vinha acontecendo”, ressalta.
O Teatro Espanca!, que mantém sua sede no centro de BH de forma independente desde outubro de 2010, também enfrenta a crise aos trancos e barrancos e apostando na famosa ajudinha dos amigos e frequentadores. Um dos coordenadores do grupo, Alexandre Sena diz que a situação já era preocupante em 2019, quando o Espanca! teve de fechar a loja onde guardava cenários e figurinos dos espetáculos e doar o material. Atividades online para sustentar o centro cultural com doações também estão sendo pensadas.
Segundo Sena, imaginar um futuro pós-pandemia ainda é complicado. Entretanto, ele reforça que a manutenção dos espaços dos grupos de teatro tem um papel social fundamental: “O que podemos pensar é continuar para que tenhamos democratização de acesso à cultura e ao nosso espaço, a cultura é um direito de todos. Querendo ou não, o processo da pandemia revela todas as discrepâncias sociais que a gente tem”.
Grupo pede agilidade nas políticas públicas
Há cerca de quatro anos, em Belo Horizonte, artistas e produtores culturais se mobilizaram e criaram um grupo para defender propostas para o setor e ampliar o diálogo com o poder público. Durante a pandemia, a iniciativa cresceu, passou a reunir coletivos de todo o Estado e ganhou nome: Movimento de Espaços de Grupos de Teatro, Dança e Circo de Minas Gerais (Meta). Atualmente, 150 companhias, de 32 cidades e oito regiões de Minas, fazem parte da ação. “Entendemos que era importante ter esse volume, sabemos que outros pares em Minas estão na mesma situação”, afirma o ator e fundador da Pierrot Lunar, Léo Quintão.
O Meta realiza campanhas para dialogar com prefeitos e deputados de cada região, discute políticas públicas e mecanismos para o fomento da cultura e mantém diálogo com o governo do Estado. Um importante cadastro também foi criado para dar dimensão da força da cultura em Minas. Os 150 espaços têm cerca de 1.300 trabalhadores diretos, enquanto os indiretos chegam a 1.200. A média de público anual dos grupos soma 520 mil espectadores. O grupo mais velho vinculado ao Meta existe há 70 anos, e metade dos coletivos (54%) tem espaços alugados.
Segundo Léo Quintão, a preocupação imediata do movimento é conseguir que os trâmites das políticas públicas de ajuda ao setor cultural sejam desburocratizados. “O que a gente pede é mais agilidade. Não sabemos ainda quando a Lei Aldir Blanc será regulamentada, e ainda tem a regulamentação dos Estados e dos municípios. Isso gera ainda mais tempo, o processo é longo”, ele diz.
Em relação aos editais lançados pela Prefeitura de BH e pelo governo de Minas, uma das críticas do movimento é que as propostas ainda não chegam a todos os níveis da cultura e que elas deveriam ser pensadas separadamente de acordo com a pluralidade de funções no meio artístico. “A produção cultural é ampla, muitas vezes os editais não dão conta de atender essa diversidade”, afirma Quintão.